Benefícios fiscais: as voltas de Sócrates

porMariana Mortágua

07 de setembro 2010 - 0:32
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Reduzir todas as deduções fiscais, como o PS vem agora defender, não é justiça fiscal mas apenas uma manobra para reduzir despesa do Estado.

Já nos habituámos aos ditos e desditos deste Governo, mas desta vez a situação exige especial clarificação. Há um ano, durante a campanha eleitoral, José Sócrates afirmava, acerca das deduções fiscais, a propósito de um debate com Francisco Louçã:

Estas pessoas que fazem as suas deduções fiscais na Educação, na Saúde e nos PPR não são ricas, é a classe média. Isto conduziria a um aumento fiscal brutal para a classe média, mais de mil milhões de euros.” SIC 2009 (campanha eleitoral)

Ontem, durante um comício do PS, parecia outra pessoa:

"Aqueles que utilizam os benefícios fiscais recorrem tanto mais a esses benefícios quanto maior o rendimento que possuem. É sem dúvida uma injustiça do nosso sistema fiscal que o PS quer legitimamente corrigir".

Ou a realidade portuguesa se alterou radicalmente no espaço de um ano, permitindo uma tão brusca mudança de posição ou, mais provável, a preocupação de José Sócrates com as injustiças vai variando, de acordo com as necessidades eleitorais (antes de ser governo) e a pressão para redução da despesa (enquanto tal). E nada disto tem a ver com justiça fiscal.

Há muito que o Bloco de Esquerda defende um sistema fiscal mais simples, mais justo e distributivo, que recaia menos sobre os rendimentos do trabalho e mais sobre o sistema financeiro e os lucros das grandes empresas. Os benefícios fiscais, em geral, vão contra estes princípios, por vários motivos.

Em primeiro lugar, porque são regressivos, prejudicam quem tem menos poder de consumo – um trabalhador que receba o salário médio em Portugal não ganha o suficiente para aceder a escolas privadas, ou PPR ou seguros de saúde, e por isso desconta menos. Em segundo lugar, porque a existência de inúmeros benefícios, aos quais são aplicados diferentes regras, complexifica o sistema fiscal e torna mais difícil a sua fiscalização, para além de reservar o acesso destas deduções a cidadãos mais informados.

Idealmente, um sistema fiscal mais justo seria um sistema com poucos ou nenhuns benefícios fiscais, mas isso implicaria a existência de serviços públicos de qualidade, capazes de assegurar a todos um acesso gratuito a saúde, educação, reforma na velhice, etc. E é aqui que reside a questão da justiça, e a principal diferença entre a posição do Bloco, o radicalismo cego do PS, e a propaganda liberal do PSD.

O principal problema associado aos benefícios fiscais, para além do seu carácter desigual, é o facto de promoverem a fuga dos serviços públicos, beneficiando fiscalmente quem opta por serviços privados. Isto quer basicamente dizer que todos os contribuintes estão, por um lado a pagar impostos para usufruir de um sistema público de saúde e, por outro, a assumir o custo dos benefícios fiscais a uma minoria que opta por fazer um seguro de saúde privado. Esta prática retira recursos ao Estado para investir em serviços de qualidade e desresponsabiliza-o dessa necessidade.

O que devemos exigir não é mais benefícios fiscais mas sim serviços públicos abrangentes, com a inclusão da medicina dentária no sistema nacional de saúde, por exemplo, e absolutamente gratuitos, com o fim das propinas no ensino superior, ou a distribuição gratuita de manuais escolares.

É por este motivo que o Bloco defende o fim dos benefícios fiscais apenas em áreas onde já existe provisão pública, e luta por mais serviços públicos nas restantes. Por exemplo: não existe em Portugal medicina dentária no sistema público, logo, a única opção é recorrer aos dentistas privados e pagar por esse serviço. Neste caso, embora não seja a situação ideal, faz sentido que o Estado financie algumas destas despesas (igual raciocínio se aplica aos manuais escolares). Mas o mesmo não acontece com a educação, por exemplo. Existem escolas públicas, gratuitas para todos e pagas pelos impostos, logo, não há razão para o Estado financiar as pessoas que preferem as escolas privadas. O mesmo para aos planos poupança reforma de carácter privado.

Reduzir todas as deduções fiscais, como o PS vem agora defender, não é justiça fiscal mas apenas uma manobra para reduzir despesa do Estado. Ainda mais porque esta redução vem acompanhada de um persistente ataque aos serviços públicos – gestão privada de hospitais, aumento das propinas, encerramento de escolas, redução das reformas e das prestações sociais, e por aí adiante.

Tão pouco o plano de liberal de Passos Coelho, embora mais coerente que o de Sócrates, tem a ver com justiça, fiscal ou social. A posição de Passos Coelho é clara. Mais benefícios fiscais para quem opta pelos serviços privados e privatização daqueles que ainda são públicos. Por detrás do argumento da “escolha” está a intenção de criar um conjunto de novos mercados, privados, de saúde e educação, apenas para quem pode pagar, deixando para o público as “sobras”. A escolha neste plano é só para os mais ricos.

Independentemente da sua posição relativamente aos benefícios fiscais, nem PSD nem PS se posicionam em favor dos serviços públicos. Os primeiros porque o declaram abertamente, os segundos porque é esse o sentido das suas práticas. E sem serviços públicos gratuitos, universais e de qualidade, financiados por impostos, pagos de acordo com as possibilidades de cada um, não há justiça fiscal ou social e, sobretudo, não há democracia.

Sobre o/a autor(a)

Mariana Mortágua

Deputada. Coordenadora do Bloco de Esquerda. Economista.
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