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Associação de Contratos Obscenos

Muita gente ganha muito com o dinheiro de todos nós. Assim se compreende que contratos criados como supletivos se tenham tornado efetivos.

Em jeito de declaração de causa, manifesto o meu desdém pelos hipócritas tutores da (pseudo)liberdade de escolha para as escolas dos filhos. São os liberais partidos deste país, tão abertos à iniciativa privada e tão contrários à intervenção do Estado, que acham exemplar subsidiarem-se no Estado para fazer a opção pelo privado. É preciso ter “lata” e ser politicamente indecoroso para defender as pretensões oportunistas e usurárias de um burguesismo elitista que quer que o Estado pague a escola privada dos filhos enquanto, em muitos casos, foge às obrigações fiscais para nada pagar ao Estado.

Sinto-me amargurado com o que esta gente é capaz de fazer. Usam as crianças para engrossar o coro do protesto, mesmo tendo que faltar às aulas (o colégio justifica); utilizam as aulas para ensinar os alunos a inculcar palavras de ordem e dramatizar choradinhos para quando chegarem os jornalistas; chantageiam professores e funcionários com a ameaça do desemprego caso não vão para a rua vestidos de amarelo; mobilizam os pais (nem todos têm as mesmas motivações, razões ou interesses) para agitarem bandeiras retrógradas e segregacionistas como as da (in)segurança, qualidade do ensino, resultados de Ranking`s, opulências  extra-curriculares; envenenam a opinião pública para aumentar adeptos com a falácia do direito “democrático” à escolha.

Expliquem-me qual é o conceito de liberdade de escolha quando se sabe que às famílias mais desfavorecidas e/ou que vivem em bairros socialmente problemáticos lhe é vedada essa possibilidade, com o insultuoso fundamento de que cá não queremos “maçãs podres”. Ou para alunos cujos resultados escolares são baixos e que são convidados a saírem para não estragar a média. Ou para os alunos e famílias que são obrigados a participar em Eucaristias, confissões e rituais religiosos mesmo que não sejam crentes. E qual é a liberdade para professores e funcionários que são convidados, muitas vezes conforme lista de padrões de conduta moral, que trabalham mais horas, têm vencimentos inferiores e estão sujeitos às bizarrias de quem manda e à delação dos capatazes.   

Sejamos claros. O que está em causa e faz agitar a direita liberal e reacionária é o ataque soez e recorrente à Escola Pública, porque esta cultiva a laicidade e não a visão doutrinal da igreja, porque se move pelo bem público e não subordinada a interesses negociais, porque trata todos por igual e não segrega por castas. Este garante das conquistas de Abril, fundada pelo liberalismo e não por estes neoliberalistas do capital, instituiu a educação como formadora da cidadania e identidade pessoal e social. Por outro lado, o que faz temer a direita mercenária é o negócio gerado por estes contratos, na mão da Igreja, amigos e próximos. Em 2016 foi transferido do erário público para as escolas com contrato de associação (3% das escolas privadas) 137 milhões de €. Se porventura as 1.700 turmas estivessem na rede pública, o que na grande maioria dos casos é viável e desejável, e sabendo-se que entre estas turmas e as do público há uma diferença de custo na ordem dos 26.000€/turma, estamos a falar em valores próximos dos 45 milhões anuais. Muita gente ganha muito com o dinheiro de todos nós. Assim se compreende que contratos criados como supletivos se tenham tornado efetivos. Veja-se a política do governo anterior em que o ministro Crato, ao mesmo tempo que fechava escolas da rede pública, cortava drasticamente no ensino público e na ação social escolar e mandava para o desemprego 30.000 professores, acabou com o princípio da proximidade e da carência de oferta educativa para abrir o leque das contratualizações. Vá-se lá saber porquê, ou talvez não?

Mesmo que se entenda o diferendo por princípios ideológicos em que a linha vermelha está traçada, não se pode dissociar a questão do superior interesse da gestão dos nossos impostos . Perante tal evidência em que “dinheiros públicos satisfazem vícios privados”, temos a armada da direita, coadjuvada pela Igreja catequizadora, em tão efusiva defesa desta mordomia, ao ponto de disparar argumentos ridículos e risíveis como o de dizer que o ministro está ao serviço da Fenprof.

É uma questão de qualidade de ensino? Não é verdade nem comprovável por qualquer aferição estatística. É uma questão de estabilidade dos alunos? Nada disto está em causa porque o governo garante a continuidade até final de ciclo. É uma questão de defesa do ensino privado? Pois bem, essas escolas têm todo o direito a manterem-se e até a proliferarem desde que não sejam subsidiadas pelo Estado. Quem quer ensino privado paga.

O que se está a passar, além de ser despesista e imoral, é obsceno porque alimenta negociatas de milhões com o Estado a servir de padrinho do enlace. Estas novas regras só pecam por tardias, porque já há muito que era tempo de acabar com o abuso.

Como em Barcelos temos duas escolas com contrato de associação e dentro de uma visão localista dos factos, considero que ambas as situações têm de ser revistas. Sabendo-se que há escolas públicas no concelho, muito próximas das do acordo, que não só têm capacidade e meios para absorver as turmas contratualizadas como estão carenciadas de alunos e em vias de encerramento. Sabendo-se que as duas escolas visadas, mesmo tendo propósitos e conceitos diferentes (numa é um declarado negócio e noutra é a propagação do ensino confessional), são concorrentes diretos às escolas públicas desviando alunos todos os anos. Sabendo-se que essas escolas há muito que transpuseram a razão implícita à fixação do contrato (num caso a área de cobertura territorial e noutro a de intervenção social), tornando-se opositoras desleais devido ao duplo financiamento. Em nome da transparência, pela melhoria de condições de igualdade e de oportunidades, pela defesa intransigente da Escola Pública, urge equacionar se há razões justificativas, ou não, para manter os contratos de associação. Sinceramente, creio que não.

Sobre o/a autor(a)

Professor. Dirigente do Bloco de Esquerda
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