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O género como democracia

É importante que rapidamente se passe à elaboração de leis respeitadoras da auto-determinação das pessoas, da democratização do género que deixe de ter as velhas gramáticas binárias e passe a poder compreender o género como diversidade.

Na recente audição pública no Parlamento sobre direitos de pessoas trans e intersexo com o intuito de refletir sobre a lei de identidade de género aprovada em 2011, o Bloco de Esquerda teve ocasião de reunir cerca de duas dezenas de pessoas trans e intersexo que falaram sobre as suas vivências e das discriminações a que estão votadas. A Assembleia da República foi o espaço onde estas pessoas tiveram a possibilidade de livremente falar da sua subjetividade, com um conhecimento muito aprofundado, porque centrado nas suas vivências e experiências de vida.

Este momento ilustra os processos gerais de democratização do género que deixa de ser exclusivamente um lugar de opressão e de conformidade às normas, para poder ser um lugar de potência, de possibilidade de agir. Aprende-se mais sobre género a ouvir quem transgride as suas normas, do que nas mil e uma repetições do binarismo, sempre centrado na leitura conservadora e reacionária do género estritamente dividido em masculino e feminino. O binarismo é antes grilheta de opressão e não permite espoletar o potencial de miríades de expressões e identidades de género que passam a ser projetos que fazem as pessoas viver mais felizes.

A sessão na Assembleia mostrou ainda o vergonhoso conservadorismo que se vive em hospitais e clínicas neste país, em que a contrário da lei vigente, se permite um indiscriminado poder não escrutinado e opaco a alguns técnicos responsáveis pelas cirurgias e acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico, com jogos de bastidores das corporações para manter estes corpos sob o arresto da colonização técnica dos seus corpos e das suas subjetividades. Sobre isso muito se aprendeu. Mas também percebemos que as pessoas trans e intersexo já começaram um processo de descolonização destes poderes dos seus corpos. Cabe agora ao processo legislativo apoiar essa descolonização, esse aprisionamento da nomeação de outrxs sobre quem se pode ser, desrespeitando os direitos das pessoas garantidos pela democracia. Assim, é importante que rapidamente se passe à elaboração de leis respeitadoras da auto-determinação das pessoas, da democratização do género que deixe de ter as velhas gramáticas binárias e passe a poder compreender, aceitar e celebrar o género como diversidade, multiplicidade de modos de vida com a garantia de reconhecimento do Estado destes princípios como um bem da comunidade. O Estado não pode exercer violência sobre estas pessoas, por omissão ou desconhecimento, cidadãs que queremos livres de operações contra a sua vontade, de esterilizações, de manipulação e agressão no espaço de consulta para que se conformem às normas que o próprio técnico julga serem as adequadas ao género de quem está à sua frente, de exibir identificação de género nos documentos, de exigir que as corporações e seus preconceitos não possam sobrepor-se à lei. Necessariamente estas condições passam por se garantir a despatologização da expressão e identidade de género e assumir-se a diversidade como valor. Mas garantindo sempre o acesso integral no Sistema Nacional de Saúde a qualquer tratamento de qualidade que permita a alguém que possa ser aquilo que sente ser, feito sempre com total respeito pela autonomia, auto-determinação e em benefício da pessoa.

Foi uma tarde onde todxs aprendemos muito, em particular investigadorxs como eu. Aprendemos a ouvir estas pessoas, que naquela tarde à porta da Assembleia tiveram que puxar de um documento de identificação, que nalguns casos, não tem nenhuma correspondência com quem realmente são. Saibamos merecer e tratar a diversidade de género como um benefício, um bem comum e saibamos proteger esta diversidade dos preconceitos, da discriminação e da dificuldade de acesso, sem lhes chamar doentes. Um momento feliz de vermos democracia a ser feita à nossa frente, através destas vozes que desafiaram poderes-saberes, de igual para igual, para que um dia a transfobia possa ser a mera memória de um pesadelo.

Sobre o/a autor(a)

Investigador auxiliar do ISCTE. Coordenador da linha temática Género, Sexualidade e Interseccionalidade do Centro de Investigação e de Intervenção Social-IUL
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