A recente perturbação dos mercados: uma incerteza impossível de calcular

16 de setembro 2007 - 0:00
PARTILHAR

Os economistas distinguem "risco" de "incerteza". Ao primeiro pode ser dado um preço pelos mercados financeiros enquanto à segunda não. A distinção entre estes dois conceitos foi feita pelo famoso economista Frank H. Knight na sua obra crucial: "Risco, Incerteza, e Lucro". Resumindo, "existe Risco quando os acontecimentos futuros ocorrem com uma probabilidade mensurável", enquanto "a Incerteza existe quando a probabilidade dos eventos futuros é indefinida ou incalculável".



Artigo de Nouriel Roubini1, publicado no seu blogue www.rgemonitor.com/blog/roubini/ a 15 de Agosto de 2007



Esta distinção entre "risco" e "incerteza" ajuda-nos a explicar a recente agitação dos mercados. Hoje o Financial Times cita um economista dos mercados da empresa Lehman, que diz: "Estamos num campo minado. Tentamos atravessá-lo sem saber onde estão as minas". Há poucos dias, outro entendido dos mercados colocava o problema desta forma: "Não são os cadáveres à superfície que assustam; são os cadáveres desconhecidos por baixo da superfície que podem emergir subitamente sem que ninguém esteja a contar com isso".



Campos de minas desconhecidos; cadáveres inesperados; isto é "incerteza", mais do que "risco". O Risco pode ser medido e o seu preço pode ser determinado, porque depende de distribuições conhecidas de acontecimentos, às quais os investidores podem atribuir probabilidades. Pelo contrário, o preço da Incerteza não pode ser calculado pelos mercados porque está relacionado com distribuições irregulares e com acontecimentos extremos que não podem ser facilmente previstos ou mensuráveis. Há uns dias atrás, o escritório financeiro do banco de investimentos "Goldman Sachs" justificou as perdas massivas (30%) dos seus dois fundos de investimento hedge funds argumentando que se tratavam de eventos que só deviam ocorrer uma vez num milhão de anos. O mesmo disseram os "mestres do universo" da LTCM quando os seus fundos especiais de investimento, que tinham um grande potencial, simplesmente ruíram em 1998.



É pena que estes eventos irregulares e raros ocorram mais frequentemente do que uma vez num milhão de anos: a verdadeira bolha e falência estatal da crise S&L do final dos anos 80; o boom e a queda dos investimentos em tecnologia em 2000-2001; o crash da bolsa em 1987; o colapso da LTCM em 1998; a variedade de bolhas de activos que acabaram por rebentar, do final dos anos 80 no Japão à Ásia Oriental em 97-98.



Com efeito, por muitas razões, o actual "pânico dos mercados" tem que ver com a incerteza não calculável mais do que com os riscos mensuráveis.



Em primeiro lugar, não fazemos ideia do valor das perdas relacionadas com empréstimos de alto risco e outros empréstimos: 50 mil milhões de dólares? 100? 200? Até podem chegar aos 500 mil milhões de dólares se os EUA entrarem em recessão e se tivermos uma crise bancária e financeira sistemática. A incerteza sobre estas perdas depende do facto de não sabermos o quão profunda e prolongada será a recessão interna causada pela quebra do mercado imobiliário e em que medida os preços vão cair. Se os preços internos descerem - tal como apontam as minhas investigações - mais do que 10% no próximo ano, a carnificina dos empréstimos de alto risco vai estender-se às hipotecas à partida mais seguras. Já existem evidências fortes de que as deficiências não se limitam aos empréstimos de alto risco dado que um número de "primeiros emprestadores" ou "quase primeiros emprestadores" está agora na banca rota ou com problemas sérios (AHM, Countrywide, apenas para citar dois exemplos). Quanto pior for a recessão interna piores serão as perdas, apesar de incertas.



Em segundo lugar, não fazemos ideia do local onde estão as minas e os cadáveres. Todos os dias as perturbações vão aparecendo nos locais e instituições onde menos seria de esperar: por agora os fundos especiais de investimento, os bancos e os gestores de activos nos EUA, Alemanha, Reino Unido, Ásia e Austrália simplesmente ruíram. E todos os dias um mercado financeiro diferente enfrenta um colapso de liquidez ou um colapso de crédito: primeiro nos empréstimos de alto risco, depois em empréstimos mais seguros; depois em empréstimos quase totalmente seguros, inúmeros instrumentos de titularização do crédito (CDOs, CLOs, LBOs, ABCPs), obrigações empresariais, créditos inter-bancários de muito curto prazo, fundos do mercado monetário. Todos os dias temos uma surpresa diferente a acrescentar à incerteza dos mercados e ao nervosismo dos investidores.



Esta crescente incerteza financeira deve-se à crescente opacidade e falta de transparência dos mercados financeiros.



Tal como foi identificado por Gillian Tett num artigo de Janeiro no Finantial Times, a opacidade dos mercados financeiros aumentou fortemente nos últimos anos graças à subida dos produtos derivados de crédito:



De qualquer modo, a área mais rápida do crescimento do ano passado foi nos instrumentos da finança de mercado, tal como produtos titularizados ou seus derivados



A proliferação deste tipo de produtos, tal como eu já referi anteriormente, traz muitos benefícios para o sistema financeiro (principalmente porque dispersam os riscos por uma mais vasta gama de investidores). Mas esta tendência também traz consigo um aspecto negativo: contribui para aumentar a opacidade do mundo financeiro.



Embora muitos cantos do universo de crédito estruturado estejam a tornar-se mais transparentes, quase tão depressa quanto uma fenda de luz emerge, uma outra onda de sombra de actividade, muito mais opaca, ofusca.



Consideremos as chamadas obrigações de dívida colateralizadas (CDO ou títulos derivados de títulos). Vários bancos de investimento e agências de notação do risco, começaram a publicar dados regulares sobre a avaliação da emissão de CDOs. Este é um passo bem-vindo, dado o nível de impacto que a emissão de CDO tem tido no crédito mundial. Mas esta informação só está disponível para os clientes e contactos dos bancos. E mesmo estes dados "públicos" (ou, mais precisamente, "semi-públicos") revelam apenas uma parte da história. Os bancos também estão aparentemente a organizar milhares de milhões de dólares de CDOs privadas. Esta actividade nunca é incluída nas bases de dados sobre emissões.



Tal opacidade, obviamente, não é nova. E sem dúvida que serve a muita gente. Os fundos de investimento (hedge funds), por exemplo, dão-se muito bem nas sombras. Tal como os bancos de investimento, e - provavelmente - parte dos media (na verdade, se todos os detalhes da actividade financeira estão livremente acessíveis na internet, quem quer comprar jornais?).



Mas, mesmo com estes sinais, continuo a achar extraordinário como é possível haver tão pouco debate público sobre as contínuas bolsas de opacidade no mundo financeiro. Mais ainda, há uma aparente falta de investigação no sentido de examinar se este mundo se está a tornar mais, ou menos, transparente para os reguladores, já para não falar para os "cidadãos investidores" ou para os políticos.



Mas este facto, claro está, garante precisamente as condições para o florescimento da opacidade - e, na ausência de uma crise financeira, vai continuar igual este ano.



Mas não são apenas os derivados do crédito que criam a opacidade do mercado. A crescente falta de transparência dos mercados vai muito mais além: milhares de fundos de investimento (hedge funds) não só estão desregulados como as suas actividades são opacas e escapam às medições de qualquer supervisor; mudança do controlo da empresa via aquisições suportadas por dívida (LBOs) operações de retirada de capital de empresa dos mercados financeiros; aumento das transacções fora do escrutínio do mercados financeiros de instrumentos derivados mais do que em trocas reguladas; desenvolvimento de complexos instrumentos financeiros cuja correcta atribuição de preço e classificação se torna cada vez mais difícil; a não avaliação destes novos instrumentos por agências de avaliação de créditos embrulhadas em grandes conflitos de interesse, dado que grande parte dos seus dividendos são obtidos a partir da classificação destes novos instrumentos financeiros estruturados; uma atitude "laissez faire" entre os supervisores e reguladores que permitiram que imprudentes relações de crédito pudessem florescer.



Vejamos dois exemplos que ilustram a forma como a incerteza e opacidade têm crescido largamente nos mercados financeiros:



  1.  Adquire-se uma porção de empréstimos de alto risco, empacotam-se e titularizam-se criando-se novos instrumentos financeiros (RMBS, títulos apoiados em créditos à habitação): a seguir, recoloca-se estes títulos em diferentes tranches de CDOs líquidas que recebem um enganadora avaliação do grau de risco pelas agências de notação do risco de créditos. Depois criam-se CDOs sintéticas fora dos mesmos RMBS; depois criam-se CDOs a partir de CDOs (CDOs ao quadrado) a partir destes CDOs; a seguir criam-se CDOs de CDOs de CDOs (CDOs ao cubo) a partir das mesmas garantias opacas; a seguir transformam-se algumas destas tranches de RMBS e CDOs em SIV ou em ABCP (novos títulos) ou em títulos transaccionáveis nos mercados monetários. Depois disto, não há que ficar admirado com a eventual entrada em pânico de alguns agentes que fogem de títulos do mercado monetário aparentemente seguros como foi o caso da Sentinel. Esse "desperdício tóxico" de cadáveres não avaliáveis e incertos está agora a emergir nos sítios mais inesperados dos mercados financeiros



  2.  Qualquer indivíduo rico pode pegar num milhão de dólares e levá-los a um corrector para alavancar esta quantia três vezes; depois, os 4 milhões resultantes (1 milhão de capital e 3 de dívida) podem ser investidos num fundo de fundos que vão multiplicar estes 4 milhões três ou quatro vezes, e depois investir essa quantia num fundo especial de investimento; a seguir o fundo especial de investimento multiplica esta quantia por três ou quatro e com ela compra tranches "juniores" de CDO que já por si estão alavancadas 10 ou 11 vezes. No final desta corrente de crédito, a quantia inicial de um milhão de dólares torna-se num investimento de 100 milhões, 99 dos quais são dívida e apenas um milhão constitui capital. Logo, existe rácio de alavancagem de 100 para 1. Desta forma, mesmo uma pequena queda de um por cento no preço do investimento final (CDO) faz desaparecer o capital inicial e cria uma corrente que desfia este novelo de dívidas. O desfiar deste esquema de crédito que Hyman Minsky designou por Pozi é exactamente o que está agora a acontecer aos mercados financeiros.



Assim, combine-se um sistema global financeiro opaco e desregulado onde os níveis moderados de endividamento por investidores individuais sobem até valores 100 vezes superiores ao capital inicial; e some-se a isto uma mistura tóxica de investimentos nos mais incertos, obscuros, mal avaliados, complexos e esotéricos derivados de créditos (CDOs de CDOs de CDOs e todo o restante alfabeto de instrumentos de crédito) que nenhum investidor pode avaliar correctamente; nessa altura, está criado um monstro financeiro que eventualmente conduzirá à incerteza, ao pânico, ao colapso do mercado, do crédito e da liquidez, enfim, ao risco sistémico e a uma aterragem económica muito complicada. As duas últimas bolhas de crédito nos EUA - a bolha e falência das empresas da área das tecnologias de informação e comunicação do final dos anos 90 - terminaram em dolorosas recessões. A última bolha do crédito foi muito maior: habitação, hipotecas, crédito, private equity e LBOs, derivados do crédito, empresas a endividarem-se. Logo, a actual falência e diminuição dos rácios de endividamento do sistema financeiro está provavelmente a conduzir-nos para outra dolorosa e complicada aterragem económica.



1 Nouriel Roubini é professor de economia na Universidade de Nova Iorque

Termos relacionados: