Israelitas e palestinianos, 40 anos depois da Guerra dos 6 dias

08 de junho 2007 - 0:00
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Tenho 83 anos. No decurso da minha vida vi o ascenso dos nazis, e a sua queda. Pude observar a União Soviética nos seus momentos culminantes, e segui o seu desmantelamento. Um dia antes da queda do muro de Berlim, nenhum alemão acreditava que chegaria a ver esse instante. Os peritos mais astutos não o previram, porque na história há correntes subterrâneas que ninguém percebe no seu fluir real.



Artigo de Uri Avnery[1], publicado a 3 de Junho de 2007 por sinpermiso.info



Disse-se: Avnery é velho, agarra-se às suas ideias antigas, não é capaz de compreender uma ideia nova. Eu pergunto-me: por acaso a ideia de um "Estado comum" com os palestinianos é uma ideia nova? Já florescia quando eu ainda era criança, nos anos trinta, mas foi a pique. A ideia de uma solução bi-estatal, pelo contrário, cresceu no terreno das novas realidades palestinianas.



O modelo da África do Sul?



Quem, de qualquer modo, estiver em contacto com a opinião pública israelita-judia sabe que o seu mais íntimo desejo é a existência de um Estado de maioria judia. Um Estado no qual os judeus sejam donos do seu destino. E esse desejo prevalece sobre quaisquer outros objectivos, incluindo o desejo de um Estado em toda a Terra de Israel.



Pode-se, certamente, falar de "Um só Estado", do Mediterrâneo até ao Jordão, quer seja de configuração binacional ou a-nacional: na prática, isso significa o desmantelamento do Estado de Israel.



Queremos mudar muitas coisas neste Estado, queremos acabar com a ocupação e com a discriminação interna. Queremos construir uma nova base para a relação entre o Estado e os seus cidadãos árabes palestinianos. Mas é impossível ignorar o ethos de fundo da imensa maioria dos cidadãos: 99,99% da população judia não quer o desmantelamento do Estado. É essa a realidade.



A maioria do povo palestiniano quer, ela própria, um Estado próprio. Necessita dele para reconstruir o seu orgulho nacional e sanar o seu trauma. Também o querem os dirigentes do Hamas com quem temos falado. Quem pensar de outra forma é vítima de uma ilusão. Há palestinianos que falam de "Um só Estado", mas para a maioria deles trata-se apenas de um eufemismo para o desmantelamento do estado de Israel. Nem sequer ignoram que é uma utopia.



Há pessoas que invocam o modelo sul-africano. Um exemplo estimulante. Desgraçadamente apenas há paralelos entre o problema de lá e o de aqui. Não havia duas nações na África do Sul, cada uma com uma tradição, uma língua e uma religião mais que milenares. Nem brancos nem negros queriam, para si próprios, um Estado separado, nem nunca tinham vivido sob dois Estados separados: do que se tratava era do poder num só estado.



Os antigos senhores da África do Sul eram racistas. Nessa medida, não foi difícil boicotar o seu estado de apartheid. Israel, pelo contrário, foi aceite pelo mundo como o estado dos sobreviventes do holocausto; ninguém se lançaria a um boicote contra Israel. Bastaria que os judeus recordassem a consigna nazi que pendia no caminho de acesso a Auschwitz: "Não comprem nada aos judeus!"



O que ensina a Europa?



A solução dos dois estados é a única praticável e realizável. É ridículo afirmar que não funcionará. O contrário é que está certo: no âmbito mais decisivo, o da consciência colectiva, ela ganha terreno.



Pouco depois da guerra de 1948, quando lançámos essa ideia, éramos apenas um punhado de pessoas. Todos diziam então que não existia um povo palestiniano. Todavia nos anos 60 passei por Washington e falei com gente da Casa Branca, do Conselho Nacional de Segurança e com a delegação dos Estados Unidos na ONU: ninguém queria ouvir falar dessa ideia.



Agora há um consenso mundial de que essa é a única solução. Estados Unidos, Rússia, Europa, a opinião pública em Israel, a opinião pública na Palestina, a Liga Árabe. Entenda-se o que isto significa: todo o mundo árabe advoga agora essa solução, algo que é de enorme valor para o futuro.



Porque se tornou isto possível? Porque a lógica interna dessa solução conquistou o mundo. Ainda que uma parte dos seus defensores actuais o sejam apenas de boca. Também Ehud Olmert se diz ganho pela ideia, enquanto, simultaneamente, pretende impedir o levantamento da ocupação. Precisamente isso indica que compreendeu que já ninguém se pode manifestar contra a solução dos dois estados. Se o mundo inteiro reconheceu essa solução como a única factível, ela terá que acabar por se realizar.



Os parâmetros são conhecidos e gozam também de aprovação internacional: surge um Estado palestiniano junto a Israel. A fronteira traça-se sobre a linha verde, a linha de demarcação anterior à guerra dos Seis Dias (eventualmente corrigida mediante o intercâmbio de territórios de valor análogo). Jerusalém será a capital de ambos os Estados. Haverá um acordo sobre o problema dos refugiados, o que na prática significa: segundo uma regulação completa, um certo número poderá regressar a Israel, todos os demais ou ficarão no estado palestiniano ou permanecerão nos seus domicílios actuais, nesse caso generosas reparações ajudarão a que sejam hóspedes bem vindos. Haverá uma associação económica, de modo que a mera existência de ambos os Estados contribuirá, ainda que modestamente, para reduzir as tremendas diferenças de capacidade entre ambos. Uma boa parte do caminho que conduz a isso já a deixámos para trás, desde os dias em que a opinião pública de Israel negava a mera existência do povo palestiniano, recusava a ideia de um estado palestiniano e negava-se a chegar a acordos com Arafat.



E por acaso não ensina a experiência europeia que o Estado nacional clássico continua a existir ainda, quando, como na UE, se tenha passado muitas das suas funções para estruturas multinacionais? Que todos continuam a viver sob os seus próprios tecto e bandeira? Quando começou a falar-se pela primeira vez da unificação da Europa, muitos queriam dissolver os estados nacionais e fundar os Estados Unidos da Europa, segundo o modelo dos Estados Unidos da América. Charles de Gaulle preveniu então contra a ignorância dos sentimentos nacionais e apelou a uma "Europa das pátrias". Afortunadamente o seu conselho foi seguido e é essa a realidade.



Uma evolução assim - suponho - é o que acabará por acontecer também aqui. De momento, há que dizê-lo, temos que enfrentar os problemas imediatos que estão colocados. Temos perante os nossos olhos um ferido a sangrar. Temos que curar as suas feridas, antes de atacar as causas da sua doença.



É verdade, em matéria de factos a situação é deprimente: os colonatos multiplicam-se e adquirem dimensões cada vez maiores, o muro alarga-se continuamente, a ocupação causa diariamente um sem número de atrocidades. Mas por baixo da superfície há correntes que vão na direcção contrária. Todos os inquéritos de opinião confirmam que há uma clara maioria de israelitas reconciliada com a ideia da existência de um povo palestiniano e aceita a ideia da necessidade de um Estado palestiniano. O governo ontem reconheceu a OLP e amanhã reconhecerá o Hamas.



Não há dúvida que 120 anos de conflito geraram no nosso povo tremendas quantidades de ódio, preconceitos, sentimentos recalcados de culpa, medo e absoluta desconfiança dos árabes. De tanto maior valor será a paz para o futuro de Israel. Com a mudança da situação internacional e com uma associação com o povo palestiniano, temos boas oportunidades de paz. Em qualquer caso, e no que me diz respeito, decidi seguir com vida até que isso aconteça.



[1] Uri Avnery é um escritor israelita, activista pela paz e analista político.

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