Texto que introduz a sessão:
MICRO-
Resistências
e Cinema
Fui muito tocado pelas páginas de Primo Levi onde explica que os campos nazis introduziram em nós “a vergonha de ser um homem”. (…) E acontece também que sintamos a vergonha de ser um homem em circunstâncias simplesmente irrisórias: face a uma grande vulgaridade de pensar, face a um programa de variedades, face ao discurso de um ministro, face às conversas de “amantes da vida”. É um dos temas mais poderosos da filosofia, o que a torna forçosamente uma filosofia política.1
Vimos propor-vos aqui algumas noções que pertencem ao universo do cinema, essa pluralidade de imagens que acaba por se tornar uma única imagem num outro domínio, a imagem que vemos em prática através das nossas utilizações. A imagem resulta da sondagem. Já não "a verdade 24 vezes por segundo", mas o erro. É por isso que os filmes de Gus Van Sant apresentam uma reflexão sobre um mundo em mutação, cujos primeiros mutantes seriam os diversos marginalizados.
A guerra larvar a que se entregam os thrown away kids em relação aos adeptos do hiperconsumo levanta a problemática de lógicas em contradição. A dos governantes contra aqueles que eles rejeitam e que claramente se excluem de si mesmos…
Paranoid Park
Vamos aproximar-nos do adolescente vulgar que Gus Van Sant descreve.
Teremos nós que progredir para uma justa percepção das nossas faculdades de ouvir, das nossas capacidades de ouvir-ver, aquelas com que nos equiparam autores como Rossellini ou Vittorio de Seta, de Gomorrha a Waltz with Bachir, bem como o cinema independente? Acto de injustiça, censura, vergonha, seguem todos os tipos de circuitos. Os circuitos dão origem a órgãos que se agregam e formam bolsas de micro-resistências.
Nada poderia ser mais perigoso para o mito da máquina e para a ordem social
desumanizada que ele criou do que recusar-se de uma forma duradoura a ter
interesse por ele, a diminuir a velocidade, a acabar com os hábitos insensatos
e as acções irreflectidas. Mas, de facto, tudo isso não começou já?2
1. Gilles Deleuze, POURPARLERS, Minuit, 2007, p. 233.
2. Lewia Mumford, Le mythe de la machine, citado por Christa Wolf in Cassandre, Ed. Stock.