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Os desafios da esquerda na zona euro

Setenta ativistas de vários países europeus analisam as relações de força na União Europeia e avançam propostas de luta contra a austeridade e a favor duma Europa dos povos e da transição ecológica.
Foto publicada no site do CADTM

Este texto foi assinado conjuntamente por mais de 70 activistas de diversos países europeus (ver lista no final do artigo); apresenta uma análise clara das relações de força na União Europeia e avança uma série de propostas radicais mas necessárias, para quem pretenda lutar contra a austeridade, a favor duma Europa dos povos e da transição ecológica.

Para além do seu conteúdo, a importância do presente texto reside no facto de ele ser assinado por personalidades e militantes de mais de 5 países europeus, provenientes de vários quadrantes: de Podemos e Izquierda Unida ao Bloco de Esquerda português, do Partido de Esquerda ao NPA em França passando por Ensemble!, da Unidade Popular ao Antarsya na Grécia, da esquerda radical dinamarquesa à de Chipre, passando pela de países como a Eslovénia, a Bósnia-Herzegovina e a Hungria. É assinado por deputados europeus de diversos partidos e países, pelo responsável das finanças de Madrid, pela ex-presidente do Parlamento grego, por uma série de membros da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega, …

As 10 propostas apresentadas resultam da análise da situação europeia desde 2010, do confronto entre o Syriza e a Troika – pois tratou-se sem dúvida dum confronto – durante o primeiro semestre de 2015 e da aplicação das políticas de austeridade levada a cabo pelo Syriza desde essa data, mas também das experiências espanholas, irlandesas e cipriotas. Os acontecimentos recentes demonstram com clareza que um governo de esquerda tem de ter a coragem de desobedecer às ordens emanadas pelas autoridades e pelos tratados europeus. Esta atitude deve ser acompanhada por uma mobilização popular encorajada pelo governo e deve incluir uma série de medidas fortes: organizar uma auditoria da dívida com participação cidadã, aplicar o controlo dos movimentos de capitais, socializar o sector financeiro e o sector energético, reformar radicalmente as políticas fiscais, … E, claro está, levar a cabo o inevitável debate sobre a zona euro, cuja saída é uma opção que deve ser defendida pelo menos em certos países.


MANIFESTO

A análise objectiva das políticas europeias dos últimos anos leva-nos invariavelmente a uma conclusão: apenas as medidas soberanas e unilaterais enérgicas de autodefesa permitirão às autoridades nacionais, e às populações que lhes conferiram mandato para romper com a austeridade, pôr em marcha essa ruptura e dar uma primeira resposta ao problema da dívida ilegítima.

A partir de Maio de 2010 a dívida tornou-se um tema central na Grécia e no resto da zona euro. O primeiro programa de 110 mil milhões de euros arquitectado pela Troika (constituída para elaborar e executar esse programa) provocou um aumento brutal da dívida pública grega. O mesmo sucedeu na Irlanda (2010), em Portugal (2011), em Chipre (2013) e em Espanha ainda que neste último caso de forma peculiar. Estes programas tinham 5 objectivos fundamentais:

1. Permitir aos bancos privados receber apoio público |1|, a fim de não pagarem a factura do rebentamento da bolha do crédito privado que eles próprios criaram e evitarem uma nova crise financeira privada internacional de grande amplitude |2|.

2. Oferecer aos novos credores públicos |3| que tomaram o lugar dos credores privados um poder coercivo enorme sobre os governos e as instituições dos países periféricos, a fim de impor uma política de austeridade radical, de desregulamentação (contrária a uma série de conquista sociais), de privatizações e de reforço de práticas autoritárias.

3. Preservar o perímetro da zona euro (ou seja, manter na zona euro a Grécia e outros países da periferia), que constitui um instrumento poderoso nas mãos das grandes empresas privadas europeias e das economias que dominam essa zona.

4. Fazer do aprofundamento das políticas neoliberais, em particular na Grécia mas também noutros países da periferia, um exemplo e um meio de pressão sobre o conjunto das populações europeias.

5. Reforçar à escala europeia (tanto no plano da UE como em cada estado-membro) as formas autoritárias de governo, sem recorrer directamente a novas experiências de tipo fascista, nazi, franquista, salazarista ou do regime dos coronéis gregos (1967-1974) |4|.

É preciso aprender a lição do falhanço da política adoptada pelo governo de Alexis Tsipras em 2015 para romper com a austeridade. É preciso igualmente tomar consciência das limitações da experiência do governo de António Costa em Portugal |5|.

Uma orientação alternativa à austeridade e favorável aos interesses dos povos deve simultaneamente incidir sobre a austeridade, sobre a dívida pública, sobre os bancos privados, sobre a zona euro, sobre a oposição às políticas autoritárias. O balanço do período 2010-2016 na zona euro é claro: é impossível sair da austeridade sem dar resposta pelo menos a estas 5 problemáticas. Certamente é preciso acrescentar que a alternativa deve abordar também outros problemas, entre os quais a crise climática e ecológica, a crise humanitária ligada ao reforço do poderio europeu (que condena todos os anos a uma morte certa no Mediterrâneo ou noutros mares milhares de candidatos à imigração ou ao asilo), a crise do Próximo Oriente. Trata-se ainda de lutar contra a extrema direita e o avanço do racismo. Após a eleição de Donald Trump, mas também após a aparição do novo movimento radical que deu sinais de vida durante a campanha de Berne Sanders e que é chamado a bater-se cara a cara contra Trump e seus projectos, a esquerda radical, os movimentos sindicais, sociais, feministas e ecológicos europeus devem estabelecer laços com as forças que resistem nos EUA.

Uma grande parte da esquerda radical com representação parlamentar tinha e tem ainda uma percepção errada da integração europeia através da UE e da zona euro. Em termos simples: via na UE e na zona euro mais vantagens que inconvenientes. Considerava que tanto a UE como a zona euro eram compatíveis com o regresso às políticas sociais-democratas, com um pouco menos de injustiça e com alguma retoma económica keynesiana.

É fundamental, com base na experiência de 2015, reforçar o campo das forças que não alimentam ilusões sobre a UE e a zona euro e que dão prioridade a uma autêntica perspectiva ecossocialista de ruptura com a UE, tal como ela existe. É preciso reconhecer que a UE e a zona euro não podem ser reformadas.

Em 2015 todos puderam constatar que é impossível convencer, com base na legitimidade do sufrágio democrático e na simples discussão, a Comissão Europeia, o FMI, o BCE e os governos neoliberais dos outros países europeus a tomarem medidas que respeitem os direitos dos cidadãos gregos, bem como os dos outros povos em geral. O refendo de 5 de Julho de 2015, que esses governos combateram por meio da chantagem e da coacção (a saber, o encerramento dos bancos gregos cinco dias antes do referendo), não os convenceu da necessidade de fazer concessões. Pelo contrário, radicalizaram as suas exigências, espezinhando os direitos democráticos fundamentais.

Em princípio, seria possível adoptar uma série de medidas à escala europeia para relançar a economia, reduzir a injustiça social, tornar sustentável o reembolso da dívida e voltar a dar oxigénio à democracia. Yanis Varoufakis, enquanto foi ministro das finanças gregas, apresentou em Fevereiro de 2015 propostas nesse sentido. Tratava-se de trocar a dívida grega por dois novos tipos de obrigações: 1. obrigações indexadas ao crescimento; 2. obrigações «perpétuas», no sentido em que a Grécia reembolsaria unicamente os juros, mas perpetuamente |6|. As propostas de Varoufakis, apesar de moderadas e perfeitamente realizáveis, não tinham na realidade qualquer hipótese de serem aceites pelas autoridades europeias.

A Comissão, o BCE, o FEEF não querem ouvir as populações. Foi o que se passou com uma série de propostas que visavam aliviar radicalmente o peso da dívida grega, bem como a de muitos outros países europeus (através da mutualização das dívidas, da emissão de euro-títulos, etc.). Tecnicamente estas propostas poderiam ser implementadas, mas o facto é que no contexto político e com as relações de força que prevalecem na UE, os países com um governo progressista não podem esperar ser ouvidos, respeitados e menos ainda apoiados pela Comissão Europeia, pelo BCE, pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade. O BCE tem meios para asfixiar o sistema bancário de um estado-membro da zona euro, cortando aos bancos o acesso à liquidez. Como já referimos, o BCE lançou mão deste expediente na Grécia, em 2015. A União Bancária e o poder arbitrário do BCE reforçam os meios coercivos das instituições europeias para fazer fracassar uma experiência de esquerda.

Os tratados tornaram-se hiper-restritivos em matéria de dívida e de défice. Tendo em conta a situação de crise, as autoridades europeias, nomeadamente o Conselho de Ministros, poderiam derrogar essas normas (já o fizeram em favor de governos que lhes eram simpáticos |7|), mas é evidente que não tencionam fazê-lo. Pelo contrário, tanto as instituições europeias como o FMI e os governos neoliberais em funções noutros países combateram activamente o governo grego, embora este tenha dado provas de grande moderação (é o menos que se pode dizer). A maioria dos meios de comunicação e numerosos dirigentes políticos europeus retrataram Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis como rebeldes e até como radicais antieuropeus. A Troika combateu a experiência em curso na Grécia entre Janeiro e Julho de 2015, a fim de demonstrar a todos os povos da Europa que não existe alternativa ao modelo capitalista neoliberal.

A capitulação do governo de Alexis Tsipras I não lhes bastou – os dirigentes europeus e o FMI exigiram e obtiveram do governo Tsipras II o reforço das políticas neoliberais, agravando o ataque ao sistema da segurança social, em particular ao sistema de pensões e reformas, acelerando as privatizações, impondo diversas mudanças jurídicas e legislativas que constituem recuos estruturais fundamentais a favor do capital e contra os bens comuns |8|. Todas estas novas medidas e contra-reformas agravam a injustiça e a precariedade. Se os credores acabarem por conceder um novo arranjo da dívida |9|, será sob a condição de prosseguir o mesmo tipo de políticas. Nesse caso a redução da dívida não representaria uma vitória, nem sequer um alívio. Seria simplesmente uma medida destinada a garantir a continuação dos reembolsos e evitar a retoma das lutas sociais.

Impõem-se uma primeira conclusão: sem tomar medidas soberanas e unilaterais enérgicas de autodefesa, as autoridades nacionais e os povos que as mandataram para romper com a austeridade não conseguirão pôr fim à violação dos direitos humanos perpetrada a pedido dos credores e das grandes empresas privadas.

Poderão alguns argumentar que, se um governo de esquerda chegasse ao poder em Madrid, poderia utilizar o peso da economia espanhola (4ª economia da zona euro em termos de PIB) na negociação com os principais governos da zona euro e obter as concessões que Tsipras não alcançou. Quais concessões? A possibilidade de relançar a economia e o emprego por meio de despesas públicas massivas e portanto aumentar o défice público? Berlim, o BCE e pelo menos 5 ou 6 outras capitais da zona euro opor-se-iam! A possibilidade de aplicar medidas muito fortes contra os bancos? O BCE, apoiado pela Comissão Europeia, rejeitaria essa opção.

Igualmente certo é que, se as forças da esquerda radical tivessem acesso ao governo em países como Portugal, Chipre, Irlanda, Eslovénia, as 3 repúblicas bálticas, não teriam meios para convencer a CE e o BCE a deixá-los pôr fim à austeridade e às privatizações e desenvolver os serviços públicos, reduzir radicalmente a dívida, etc. Tais governos teriam de resistir e tomar medidas unilaterais para defender a sua população. E se vários governos de esquerda fossem empossados simultaneamente em vários países da zona euro e exigissem em conjunto uma renegociação? Sem dúvida seria uma bela coisa, mas esta hipótese tem de ser posta de lado, quanto mais não seja por razões que têm a ver com os calendários eleitorais.

Será que um governo de esquerda em Paris, caso Mélenchon obtivesse uma vitória nas eleições presidenciais de Maio de 2017 e as forças de esquerda radical obtivessem outra nas legislativas que seguem, poderia forçar uma reforma do euro? É essa a hipótese proposta pela campanha de Jean-Luc Mélenchon. Podemos duvidar dela com razoável certeza. Admitamos que Mélenchon chega à presidência e constitui governo. Quererá então aplicar uma série de medidas de justiça social e tentará obter uma reforma do euro. Quais seriam as suas possibilidades? O que um governo de esquerda em França pode fazer, é desobedecer aos tratados e fazer respeitar a sua escolha, mas não consegue obter uma reforma profunda da zona euro. Para isso, seriam necessárias vitórias eleitorais simultâneas tanto nos países principais como em diversos países da periferia. Dito isto, é claro que, se um governo insubmisso da França e seus aliados tomasse medidas unilaterais a favor das respectivas populações e do resto do mundo (por exemplo anular de forma unilateral as dívidas da Grécia e dos países ditos em desenvolvimento em relação à França), desempenharia um papel positivo na Europa.

Dito isto, é preciso acrescentar que está fora de causa procurar uma saída nacionalista para a crise. Tal como no passado, é necessário adoptar uma estratégia internacionalista e defender uma integração europeia dos povos oposta à integração actual, que é totalmente dominada pelos interesses do grande capital.

Os elos fracos da cadeia de dominação intra-europeia situam-se nos países periféricos. Se o Syriza tivesse adoptado uma estratégia correcta, poder-se-ia ter dado uma reviravolta positiva em 2015. Não foi isso que aconteceu. Os elos fracos da cadeia onde a esquerda radical pode aceder ao governo nos próximos anos são nomeadamente a Espanha e Portugal. Talvez o mesmo possa vir a suceder futuramente na Irlanda, na Eslovénia, em Chipre, etc. Tudo depende de vários factores: a capacidade da esquerda radical de extrair lições do ano de 2015 e apresentar propostas anticapitalistas e democráticas que suscitem adesão … Tudo dependerá, sem sombra de dúvida, do grau de mobilização popular … Se não houver pressão nas ruas, nos bairros, nos locais de trabalho, para que sejam feitas mudanças reais e para recusar compromissos mancos, o futuro será tenebroso.


Dez propostas para não repetir a capitulação a que assistimos na Grécia

Para não se repetir a capitulação que vimos na Grécia em 2015, eis 10 propostas para a mobilização social e para a acção dum governo realmente ao serviço do povo, que devem ser adoptadas de forma imediata e simultânea.

A primeira proposta consiste na necessidade de os governos de esquerda desobedecerem, de maneira muito clara e antecipadamente anunciada, à Comissão Europeia. O partido ou a coligação de partidos que pretenda governar (e em particular, claro está, temos em mente a Espanha) terá de recusar obedecer, desde o início, às exigências de austeridade e deverá comprometer-se a recusar o equilíbrio orçamental. Deverá afirmar: «Nós não respeitaremos a obrigação decretada pelos tratados europeus de respeitar o equilíbrio orçamental, porque pretendemos aumentar a despesa pública para lutar contra as medidas anti-sociais e de austeridade e encetar a transição ecológica.» Por consequência, o primeiro ponto a ter em conta é um compromisso, claro e determinado, de desobedecer. Após a capitulação grega, é essencial abandonar a ilusão de que seria possível obter da Comissão Europeia e doutros governos europeus o respeito pela vontade popular. Manter essa ilusão conduziria ao desastre. É preciso desobedecer.

Segundo ponto: comprometer-se a apelar à mobilização popular. Tanto ao nível de cada país como ao nível europeu. Também este aspecto falhou na Grécia e na Europa em 2015. É evidente que os movimentos sociais europeus não estiveram à altura em termos de manifestações; ainda que algumas tenha havido, não demonstraram um nível suficiente de solidariedade com o povo grego. Mas também é verdade que a orientação estratégica do Syriza não previa o apelo à mobilização popular europeia, nem sequer à grega. E quando o governo de Tsipras apelou à mobilização por referendo a 5 de Julho de 2015, foi para logo de seguida desrespeitar a vontade de 61,5 % dos Gregos, que recusaram obedecer às exigências dos credores e rejeitaram as suas propostas.

Recordemos que a partir de fins de Fevereiro de 2015 e até finais de Julho de 2015, Yanis Varoufakis e Alexis Tsipras fizeram declarações que visavam convencer a opinião pública de que estava à vista um acordo e que as coisas se iriam compor. Imaginemos, pelo contrário, que após cada negociação importante eles tivessem explicado o que estava em jogo, através de comunicados, de declarações aos meios de comunicação social, tomando a palavra na praça pública, diante das instituições europeias em Bruxelas, enfim, de todas as formas possíveis. Imaginemos que eles tivessem esclarecido o que se estava a tramar – isso teria provocado a concentração de milhares ou dezenas de milhar de pessoas, as redes sociais teriam transmitido a centenas de milhar ou milhões de destinatários esse discurso alternativo.

Terceiro ponto: comprometer-se a organizar uma auditoria da dívida com participação cidadã. A situação difere nos 28 países da UE, bem como dentro da zona euro. Existem países europeus onde a suspensão dos reembolsos constitui uma necessidade absoluta e prioritária, como no caso da Grécia, a fim de dar resposta antes de tudo às carências sociais e garantir os direitos humanos fundamentais. É também a peça chave duma estratégia de autodefesa. Em Espanha, Portugal, Chipre, Irlanda, tudo depende da relação de forças e da conjuntura. Noutros países é possível começar por fazer uma auditoria e depois decidir a suspensão dos reembolsos. Estas medidas devem ser aplicadas tendo em conta a situação específica de cada país.

Quarta medida: controlar os movimentos de capitais. E ter em mente o que isso significa. Ou seja, contrariar a ideia de que seria interdita aos cidadãos a transferência de umas quantas centenas de euros para o estrangeiro. É evidente que as transacções financeiras internacionais serão autorizadas até um certo montante. Pelo contrário, trata-se de exercer um controlo estrito sobre os movimentos de capitais acima desse montante.

Quinta medida: socializar o sector financeiro e o sector energético. Socializar o sector financeiro não significa apenas desenvolver um pólo bancário público. Trata-se, isso sim, de decretar um monopólio público sobre o sector financeiro, ou seja, sobre os bancos e as seguradoras. Trata-se duma socialização do sector financeiro sob controlo cidadão. Isto significa transformar o sector financeiro em serviço público |10|. No quadro da transição ecológica, é evidente que a socialização do sector energético é também uma medida prioritária. Não pode existir transição ecológica sem monopólio público do sector da energia, tanto ao nível da produção como da distribuição.

Sexta proposta: criação duma moeda complementar, não convertível, e o inevitável debate sobre o euro. Seja no quadro duma saída do euro, seja no quadro da permanência no euro, é necessário criar uma moeda complementar não convertível. Por outras palavras, uma moeda que permita a troca, em circuito fechado dentro do país. Por exemplo, para pagamento dos aumentos de pensões de reforma, dos salários da função pública, para pagamento dos impostos, dos serviços públicos, etc. A moeda complementar permite uma soltura parcial da ditadura do euro e do BCE.

É claro que não se pode evitar o debate sobre a zona euro. Em vários países a saída da zona euro é também uma opção que deve ser defendida pelos partidos, sindicatos e outros movimentos sociais. Alguns países da zona euro não poderão de facto romper com a austeridade e lançar uma transição ecossocialista se não abandonarem a zona euro. Em caso de abandono da zona euro, será necessário ou aplicar uma reforma monetária redistributiva |11| ou um imposto excepcional progressivo acima dos 200 000 €. Esta proposta apenas diz respeito ao património líquido, deixando de parte o património imobiliário (casas, etc.) mencionado na sétima medida.

Sétima medida: uma reforma radical da política fiscal. Suprimir o IVA cobrado sobre bens e serviços essenciais, como a alimentação, a electricidade, o gás e a água (no caso dos três últimos, até um certo nível de consumo per capita) |12|, e outros bens de primeira necessidade. Em contrapartida, um aumento do IVA sobre os bens e produtos de luxo, etc. É também necessário aumentar os impostos sobre os lucros das empresas privadas e sobre os rendimentos acima de um determinado nível. Por outras palavras, lançar um imposto progressivo sobre o rendimento e o património. A posse de habitação própria deveria ser exonerada de imposto abaixo de um determinado montante que variaria em função da composição do agregado familiar. A reforma fiscal tem de produzir efeitos imediatos: uma baixa acentuada dos impostos indirectos e directos para a maioria da população e uma subida acentuada para os 10 % mais ricos e para as grandes empresas. Finalmente, a luta contra a evasão fiscal tem de ser intensificada.

Oitava medida: desprivatizações. «Recomprar» as empresas privadas por um euro simbólico. Assim, deste ponto de vista, utilizar o euro poderia tornar-se muito simpático, ao pagar um euro simbólico a quem se aproveitou das privatizações. E reforçar e ampliar os serviços públicos sob controlo cidadão.

Nona medida: aplicar um vasto plano de urgência para a criação de emprego socialmente útil e para a justiça. Reduzir o tempo de trabalho, mantendo o salário. Revogar as leis antissociais e adoptar leis para remediar a situação da dívida hipotecária abusiva; esta medida é prioritária em países como a Espanha, a Irlanda, a Grécia e outros. Este problema poderia também ser resolvido por via legal, evitando processos (pois existem numerosos processos de dívida hipotecária em que as famílias são confrontadas com os bancos). O parlamento pode decretar uma lei de anulação das dívidas hipotecárias inferiores a 150 000 euros, por exemplo, e assim pôr termo aos procedimentos judiciais. Trata-se ainda de aplicar um vasto programa de despesas públicas a fim de relançar o emprego e as actividades socialmente úteis, favorecendo os circuitos de proximidade.

Décima medida: encetar um verdadeiro processo constituinte. Não se trata de mudanças constitucionais no quadro das instituições parlamentares actuais. Trata-se de dissolver o parlamento e de convocar eleições para sufrágio directo duma assembleia constituinte. E procurar inserir este processo noutros processos constituintes ao nível europeu.

Estas são as 10 propostas de base que submetemos ao debate. Mas uma coisa é certa: as medidas a tomar devem ir à raiz dos problemas e devem ser aplicadas simultaneamente, para garantirem um programa coerente. Na falta de aplicação de medidas radicais desde o início, não será possível romper com as políticas de austeridade. É impossível romper com as políticas de austeridade sem aplicar medidas radicais contra o grande capital. Quem pensa que é possível evitar este caminho cria uma cortina de fumo que impede avanços concretos. Ao nível europeu, a natureza da arquitectura europeia e a amplitude da crise do capitalismo levam a que não exista espaço real para as políticas produtivistas neo-keynesianas. O ecossocialismo não deve ser posto à margem mas sim no cerne do debate, donde devem sair propostas imediatas e concretas. Há que levar a bom termo a luta contra a austeridade e adoptar um rumo anticapitalista. A transição ecossocialista é uma necessidade absoluta e imediata.


Lista de signatários

ALEMANHA
Angela Klein, revista SOZ

ÁUSTRIA
Christian Zeller, professor de geografia económica, Universidade de Salzburgo

BÓSNIA-HERZEGOVINA
Tijana Okic, filósofo

BÉLGICA
Olivier Bonfond, economista, membro da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega
Jean-Claude Deroubaix, sociólogo da Universidade de Mons
Mauro Gasparini, LCR/SAP
Corinne Gobin, politólogo da ULB
Herman Michiel, editor da revista Ander Europa
Christine Pagnoulle, prof. Honorário da Universidade de Liège, presidente ATTAC-Liège
Éric Toussaint, porta-voz do CADTM internacional, coordenador científico da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega

CHIPRE
Stavros Tombazos, economista, prof. universitário, membro da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega

DINAMARCA
Soren Sondergaard, deputado, ex-deputado europeu

ESPANHA
Daniel Albarracín, economista e sociólogo, Podemos, membro da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega
Marina Albiol, eurodeputada da Izquierda Unida e porta-voz da delegação Esquerda Plural no Parlamento europeu
Yago Álvarez, activista, membro da plataforma de auditoria cidadã da dívida (PACD)
Josep Maria Antentas, professor de sociologia da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB)
Rommy Arce, conselheira municipal de Madrid, membro da coligação Ahora Madrid e do Podemos
Raúl Camargo, secretário político do Podemos da Comunidade de Madrid e deputado desta. Militante do Anticapitalistas
Sergi Cutillas, economista de Ekona. Membro do grupo promotor do novo movimento político catalão Un País En Comú, membro da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega
Jérôme Duval, membro do CADTM e da PACD
Manolo Gari, economista, activista ecossocialista, militante do Anticapitalistas e membro do Podemos
Fátima Martín, journalista, membro do CADTM e da PACD
Teresa Rodríguez, deputada andaluza, ex-eurodeputada, porta-voz do Podemos (Andalucía)
Carlos Sanchez Mato, conselheiro municipal e responsável pelas finanças da Câmara de Madrid 
Miguel Urbán, eurodeputado Podemos

FRANÇA
Olivier Besancenot, porta-voz do NPA
Jeanne Chevalier, Parti de Gauche (subscreve as 10 propostas mas não a introdução)
Eric Coquerel, coordenador político do Parti de Gauche (subscreve as 10 propostas mas não a introdução)
Pierre Cours-Salies, professor de sociologia na Universidade de Paris 8, Ensemble!
Léon Crémieux, NPA
Alexis Cukier, Ensemble! EReNSEP
Pascal Franchet, presidente do CADTM França
Pierre Khalfa, co-presidente da Fondation Copernic
Djordje Kuzmanovic, Parti de Gauche (subscreve as 10 propostas mas não a introdução)
Jan Malewski, redactor da revista Inprecor
Myriam Martin e Jean-François Pellissier, porta-vozes de Ensemble!
Corinne Morel Darleux, Parti de Gauche (subscreve as 10 propostas mas não a introdução)
Christine Poupin, porta-voz NPA
Catherine Samary, economista, membro da ATTAC França
Patrick Saurin, sindicalista SUD, membro do CADTM e da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega

GRÉCIA
Tassos Anastassiadis, sociólogo e jornalista (Antarsya)
Aris Chatzistefanou, realizador dos documentários Debtocracy e Catastroika
Nikos Chountis, eurodeputado Unidade Popular, ex-deputado europeu, ex-vice-ministro do primeiro governo de Tsipras
Zoe Konstantopoulou, ex-presidente do Parlamento grego, fundadora do movimento político Plefsi Eleftherias, presidente da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega (subscreve as 10 propostas mas não a introdução)
Stathis Kouvelakis, King’s College London, Unidade Popular
Costas Lapavitsas, economista, SOAS University of London, EReNSEP
Spyros Marchetos, Universidade Aristóteles de Tessalónica, membro do Antarsya, membro da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega
Yorgos Mitralias, Greeks for Bernie’s Mass Movement, membro do CADTM Grécia; membro da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega
Antonis Ntavanelos, RedNetwork, Unidade Popular
Leonidas Vatikiotis, jornalista (Antarsya), membro da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega

HUNGRIA
Judit Morva, economista, redactora da revista BALMIX

ITÁLIA
Gigi Malabarba, operário RiMaflow em autogestão, Fuorimercato, ex-senador, Communia Network, Itália
Checchino Antonini, director da revista L’Anticapitalista

LUXEMBURGO
Justin Turpel, ex-deputado déi Lénk – la Gauche 
David Wagner, deputado déi Lénk – la Gauche

POLÓNIA
Zbigniew Marcin Kowalewski, jornalista
Dariusz Zalega, jornalista

PORTUGAL
Francisco Louçã, economista, Bloco de Esquerda, ex-deputado. Põe algumas reservas quanto a certos aspectos técnicos das 10 propostas
Alda Sousa, Universidade do Porto, ex-eurodeputada, Bloco de Esquerda
Rui Viana Pereira, sonoplasta, tradutor, membro do Comitá para a Anulação da Dívida Pública Portuguesa (CADPP)

REINO UNIDO
Penelope Duggan, editora da revista International Viewpoint 
Susan Pashkoff, Left Unity, Economic Policy Commission
Alan Thornett, Socialist Resistance in Britain

SÉRVIA
Andreja Zivkovic, investigador

ESLOVÉNIA
Maja Breznik, investigadora
Rastko Močnik, sociólogo, professor universitário

SUÍÇA
Jean Batou, deputado Solidarités Genève, prof. Universidade de Lausana


Publicado no site do Comité para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo.


Notas:

|1| No caso da Grécia, tratava-se de bancos gregos, franceses, alemães, belgas e holandeses principalmente (uma quinzena de grandes bancos privados, para dar uma ideia aproximada). Para uma análise pormenorizada ver «Rapport préliminaire de la Commission pour la vérité sur la dette publique grecque», Junho/2015, caps. 1 e 2 ; intervenção de Éric Toussaint na apresentação do relatório preliminar da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega, a 17/junho/2015 ; ver também «Grèce : Les banques sont à l’origine de la crise», publicado em 23/12/2016.
Ver ainda: documentos secretos do FMI sobre a Grécia, com comentários de Éric Toussaint (CADTM)

|2| Nesta época, as actividades de muitos dos grandes bancos franceses, alemães, holandeses, belgas, etc., envolvidos estavam intimamente ligadas aos mercados financeiros dos EUA e aos maiores bancos dos EUA e do Reino Unido. Além disso, tinham acesso a uma avultada linha de crédito oferecida pela Reserva Federal dos EUA, donde o interesse demonstrado pela administração de Barack Obama na crise grega e irlandesa, e em geral na crise bancária europeia.

|3| No caso da Grécia tratava-se de 14 Estados da zona euro «representados» pela Comissão Europeia, o FEEF (Fundo Europeu de Estabilidade Financeira), ao qual sucedeu o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MES), o BCE e o FMI.

|4| Este último aspecto é frequentemente substimado, pois a tónica é posta nos aspectos económicos e sociais. A tendência autoritária no interior da UE e da zona euro é no entanto ao mesmo tempo central e alvo deliberado da Comissão Europeia e do grande capital. Esta tendência inclui o reforço do poder executivo, o recurso a expedientes de voto, a violação ou limitação duma série de direitos, a quebra de respeito pelas escolhas dos eleitores, o aumento da repressão sobre o protesto social, etc.

|5| Aquando das eleições legislativas de 4/10/2015, as forças de esquerda obtiveram a maioria absoluta no Parlamento: o PS foi o segundo partido mais votado, com 32,4 %; o Bloco de Esquerda ficou em terceiro com 10,3 % e 19 deputados (tinha 8 em 2011); o PCP ganhou um lugar e dispõe de 15 deputados; o PEV manteve os seus 2 deputados. Em Novembro de 2015 foram estabelecidos acordos entre estes partidos e o PS: o PS governa sozinho e os outros partidos mais radicais (BE, PCP e PEV), embora não participem no governo, apoiam no Parlamento as suas decisões, quando as consideram adequadas.

|6| Cf. : http://www.latribune.fr/actualites/...

|7| Para citar apenas alguns exemplos: a França de Nicolas Sarkozy e a Alemanha de Angela Merkel não foram castigadas, apesar de não respeitarem as suas obrigações em matéria de défice; mais recentemente, a Comissão relaxou igualmente em relação ao governo de Mariano Rajoy, em 2015 e em 2016.

|8| Modificação da legislação a fim de, em caso de falência duma empresa, fazer os bancos passarem à frente doutros credores: os assalariados e os reformados da empresa (Verão de 2015); marginalização completa dos poderes públicos nas assembleias de accionistas dos bancos (Dezembro de 2015); acréscimo dos poderes atribuídos ao organismo independente de colecta de impostos; novos recuos nas leis laborais; instauração de um mecanismo de cortes orçamentais automáticos em caso de desvio dos objectivos dos excedentes orçamentais inscritos no 3º Memorando. Verifica-se também um agravamento do endividamento das famílias.

|9| A dívida já foi reestruturada em 2012. as autoridades europeias tinham anunciado uma redução de 50 % da dívida grega. Na realidade, o que resultou foi um considerável aumento da dívida após a reestruturação. As medidas anunciadas em Dezembro de 2016 são uma autêntica comédia (ver Michel Husson).

|10| Para uma explicação sobre a socialização dos bancos, ver «Que fazer com os bancos?».

|11| Aplicando uma taxa de câmbio progressiva na passagem do euro para a nova moeda, conseguir-se-ia diminuir os montantes líquidos na posse dos 1 % mais ricos, redistribuindo assim às famílias a riqueza líquida.

|12| Isto pode ser combinado com medidas de gratuitidade no consumo da água, electricidade, gás, etc., per capita e até uma certa medida de consumo.

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