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“O povo não se vergará aos sacrifícios constantes da austeridade”

O líder parlamentar do Bloco de Esquerda afirmou na sua intervenção na AR: “O povo que fintou o seu destino amargo com o 25 de Abril é o mesmo que não se vergará aos sacrifícios constantes da austeridade”. Pedro Filipe Soares acusou ainda Cavaco Silva de querer uma “democracia tutelada”.
Pedro Filipe Soares acusou Cavaco Silva de querer uma “democracia tutelada”

Pedro Filipe Soares fez a intervenção do Bloco de Esquerda na sessão solene comemorativa do 25 de Abril de 74 (que reproduzimos na íntegra abaixo) e, afirmando que “eu e tantas e tantos somos filhos da revolução”, salientou: “ Para nós, a liberdade foi sempre tão natural como o respirar, e o único regime que conhecemos é o democrático”.

O líder parlamentar do Bloco criticou a “narrativa da inevitabilidade” que “torna cinzenta a democracia”, em que “austeridade é apresentada como o alfa e o ómega, o princípio e o fim de todas as escolhas” e criticou o Presidente da República por ser o mais insistente nesta “ladainha”.

“E é pela voz do próprio Presidente da República que chega mais insistentemente esta ladainha. Quando tenta impor o consenso na austeridade inscrito à partida nos programas eleitorais, quer uma democracia tutelada. Na chantagem para uma maioria absoluta, qualquer que seja o veredito popular, quer uma democracia condicionada”, acusou Pedro Filipe Soares.

O líder parlamentar do Bloco rejeitou que “a austeridade seja a nova normalidade”, sublinhou que “a normalidade da austeridade é a pretensão da perenidade da troika, da condenação da Constituição a texto menor e da elevação do Tratado Orçamental a escritura nas rochas” e afirmou:

“O povo que fintou o seu destino amargo com o 25 de Abril é o mesmo que não se vergará aos sacrifícios constantes da austeridade e não se condiciona a qualquer inevitabilidade”.

Declaração do deputado Pedro Filipe Soares na Assembleia da República, na sessão solene comemorativa do 25 de Abril de 1974

Nessa madrugada do dia 25 de Abril de 1974, em que os capitães saíram à rua pela liberdade, eu ainda não era nascido. Eu e tantas e tantos somos filhos da revolução. Para nós, a liberdade foi sempre tão natural como o respirar, e o único regime que conhecemos é o democrático. E por ser tão natural, valorizamos mais essa conquista e aqueles que a fizeram. Esse abalo redentor mostrou a força de um povo, que de um golpe militar, fez uma revolução. Mostrou como o futuro se fez presente e bebeu de um trago a liberdade. A liberdade de expressão, o direito à manifestação ou de associação foram num ápice forjados nas ruas, muito antes de chegarem a ser leis.

Hoje comemoramos esse momento fundamental e os 40 anos da assembleia constituinte que lhe está umbilicalmente ligada. Esse processo constituinte foi exemplar: tão vivo, controverso, radical no seu debate e na sede de participação, que foi um hino à democracia. Esses momentos fortes e processos tão marcantes não podem ser transformados em salamaleques, não se esgotam nos protocolos, nas marchas pomposas, nem se apoucam com os que se envergonham com os cravos. Eles não ficam acantonados na História, porque fazem parte da vida e da identidade do nosso país. E os homens e mulheres que os protagonizaram, venceram uma ditadura brutal e sanguinária, que perseguia quem tinha opinião, torturava quem sonhava a liberdade, oprimia as mulheres num conservador patriarcado, tornava proscritos os homossexuais, condenava os jovens à guerra colonial ou à deserção. Eram livres de espírito, deram corpo à resistência e arrancaram a ferros a liberdade: são os heróis que abriram a porta a essa madrugada libertadora.

A Escola Pública, o Serviço Nacional de Saúde, a proteção social, os direitos laborais e a participação cidadã tinham a marca genética da igualdade, da justiça e da solidariedade semeadas em Abril. Começava a modernidade no país.

Veio depois a abertura à Europa e o prenúncio de uma terra mais plena perante a queda dos muros. Mas vemos hoje como entre os sonhos e a dureza da realidade, muito temos ainda a haver. Da queda do muro de Berlim, aos novos muros internos criados, até ao cadafalso do Mediterrâneo. E aqueles homens, mulheres e crianças que fogem à guerra, à fome e à violência, que são depois vítimas de pirataria humana, esbarram contra a Europa fortaleza que em vez de se mobilizar para os acolher, se mobiliza para os devolver. Onde está a consciência europeia, a defesa dos direitos humanos, ou até a assunção das responsabilidades que a Europa tem nos conflitos armados que expulsam estas populações das suas terras? Não existe. Existe um diretório e uma troika de plantão.

Como há tantos sonhos, tantos valores, tantas promessas ainda por cumprir!

41 anos depois da Revolução de Abril, 40 anos depois das eleições para a Assembleia Constituinte, a democracia já não é uma criança, mas ainda não se assume plena e integral. A narrativa da inevitabilidade torna cinzenta a democracia. A austeridade é apresentada como o alfa e o ómega, o princípio e o fim de todas as escolhas.

E é pela voz do próprio Presidente da República que chega mais insistentemente esta ladainha. Quando tenta impor o consenso na austeridade inscrito à partida nos programas eleitorais, quer uma democracia tutelada. Na chantagem para uma maioria absoluta, qualquer que seja o veredito popular, quer uma democracia condicionada. Assistimos assim a um pensamento que de tão único que quer ser, é o eucalipto que tudo seca, que afasta os cidadãos porque lhes diz que o seu voto não conta para nada, não faz qualquer diferença. É a caricatura de uma democracia porque verdadeiramente nada decide, instrumentalizada para legitimar o que, independentemente da decisão popular, já está previamente acordado.

Dizia Zeca Afonso que “o povo é quem mais ordena”. Não aceitaremos de outra forma. Não há outro dono da democracia para além do povo. E mesmo que digam que não é possível, que tudo está decidido, que há um Tratado ao qual tudo está vergado, que é Orçamental e não ornamental, diremos que o povo é quem mais ordena, que a democracia não nasceu para ser uma pena.

Nesta monotonia formalmente democrática, querem fazer do normal a austeridade. Aos jovens prometem estágios, que o desemprego está garantido. Diz a Capicua: “Temos tudo o que é estudo…/Emprego zero”. O salário, dizem, é um privilégio não um direito, porque os direitos, esses, estão acima das nossas possibilidades. E continua a rapper: “O salário não sobe,/É precário mas ouve,/Não há nada menos podre e não sais de casa dos pais,/Não vais longe,/Um dia melhorará mas não é hoje”.

Eram extraordinários os cortes, passou a ser extraordinário ter um salário, que os cortes, esses, são normais, já estão certos. Eram temporários, mas ficam permanentes.

Era preciso apertar o cinto e congelaram-se as pensões. Era também extraordinário, mas a normalização da austeridade é glacial, as pensões não descongelam. E dizem que tem de ser, porque ainda é preciso cortar mais. Ou aumentar a idade da reforma, até que a pensão ou a reforma sejam um estado e não uma remuneração. “Estás reformado? Estou, mas continuo a trabalhar!” Parece ser isso a que querem condenar no futuro a minha geração. Isto, claro, para quem ainda tem emprego, porque os outros que se desenrasquem, que isto não dá para todos!

O aumento da pobreza mostra bem quem está a sofrer: Portugal foi o país em que mais aumentou o risco de pobreza, com as crianças a serem as mais afetadas. Ao mesmo tempo aumentaram as fortunas. Mas querem fazer crer que é vulgar esta desigualdade, que não é sequer um problema que os ricos fiquem mais ricos, enquanto os pobres ficam mais pobres. Que é banal esta destruição de tudo o que é público, estas privatizações em catadupa, para que a acumulação de uns poucos seja a regra.

Na saúde, desespera-se nas urgências e diz o governo que vai bem, que é normal. Estão as macas nos corredores, as imagens nas televisões, e diz o governo que é natural, que só prova a qualidade do serviço. Estranha qualidade esta, que para não se morrer sem medicamentos, se é obrigado a expor a vida e a doença nos jornais.

Querem que a austeridade seja a nova normalidade, o edifício onde os direitos se desconstroem, onde os serviços públicos se decompõem e onde o futuro se faz passado. Quatro anos de destruição não lhes são suficientes, querem ainda mais!

Mas não aceitamos essa condenação. A normalidade da austeridade é a pretensão da perenidade da troika, da condenação da Constituição a texto menor e da elevação do Tratado Orçamental a escritura nas rochas.

O povo que fintou o seu destino amargo com o 25 de Abril é o mesmo que não se vergará aos sacrifícios constantes da austeridade e não se condiciona a qualquer inevitabilidade.

Dizia Eduardo Galeano que “há outro mundo na barriga deste, esperando. Que é um mundo diferente. Diferente e de parto difícil. Não nasce facilmente. Mas com certeza pulsa no mundo em que estamos.”

Foi essa esperança que criou Abril.

Viva a Democracia! Viva o Povo que é o soberano em Democracia!

"Cavaco quer impor uma democracia tutelada"

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