Löwy sobre Brasil: “Não há contradição em defender democracia e combater políticas neoliberais”

10 de abril 2016 - 0:06

Não é necessário apoiar o governo de Dilma Rousseff para nos opormos às manobras golpistas da direita, às tentativas de “golpe legal” via impeachment contra uma Presidenta democraticamente eleita pelo sufrágio universal, ou aos clamores reacionários dos partidários de um retorno dos militares ao poder. Entrevista a Michael Löwy.

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No contexto do lançamento do livro Michael Löwy: marxismo e crítica da modernidade, de Fabio Mascaro Querido, que retraça a trajetória intelectual e política de Löwy e oferece um panorama do conjunto da sua obra, o sociólogo franco-brasileiro concedeu uma entrevista à Folha de S. Paulo em que discute a conjuntura política e económica do Brasil, a onda conservadora global e os desafios e possibilidades abertas para a esquerda mundial. No entanto, somente alguns fragmentos da entrevista realizada por Natália Portinari foram aproveitados na matéria publicada. Por isso, o Blog da Boitempo publica a seguir, a versão integral da entrevista.

Qual o papel do marxismo e do pensamento socialista hoje? Estamos num momento de polarização política, em que, talvez, jogos concretos de interesse (PT vs. pró-impeachment/ Donald Trump vs. democratas/ na Europa, xenofobia, Estado Islâmico…) não deixem espaço para projetos de resistência anticapitalista. Esse diagnóstico faz sentido? Como interferir, qual a porta de entrada da esquerda revolucionária num mundo assim? O que o pensamento utópico tem a acrescentar?

O pensamento marxista, o socialismo, a resistência anticapitalista constituem a única esperança para a humanidade de escapar das falsas alternativas que propõe o sistema imperante: ditadura militar ou terrorismo, racismo xenofóbico ou fundamentalismo islâmico, neo-liberalismo ou nacionalismo fascista, democracia corrupta ou regime autoritário direitista, e assim por diante. Como diz um velho proverbio inglês, é a escolha entre o diabo e o fundo do mar. Mas para que o marxismo e o socialismo possam ter um papel, é preciso que se enriqueçam com as contribuições dos movimentos sociais: ecologia, feminismo, indigenismo, etc. O marxismo não tem pretensão de ser um sistema fechado de dogmas e axiomas, mas é, por definição, um pensamento em movimento, em transformação permanente – como o era o próprio pensamento de Marx e Engels no curso de sua vida.

A porta de entrada para a esquerda revolucionaria são as questões essenciais para a população, para os trabalhadores, para a juventude, para as mulheres: a luta contra a injustiça social, a exploração, o racismo, a dominação planetária de uma minúscula oligarquia financeira, e a destruição acelerada da natureza pelo sistema. Será que esta porta se vai abrir? Não sabemos, só podemos apostar – no sentido da aposta de Pascal: um compromisso de uma vida inteira, com o risco de perder, mas também com a esperança de vitória. Uma aposta na auto-emancipação dos explorados e oprimidos, que não é garantida por nenhuma “lei da historia”. (Leia, a este respeito, o artigo “Lucien Goldman, marxista pascaliano”, de Michael Löwy, publicado na revista Margem Esquerda #24).

É verdade que o sistema capitalista está cada vez mais atravessado de contradições, como revela a crise financeira que o desestabiliza desde 2008. Mas, como dizia Walter Benjamin, “a nossa geração aprendeu uma lição: o capitalismo nunca vai morrer de morte natural”. Não podemos esperar que o sistema desapareça, vitima das suas contradições: só se acabará com ele se houver uma vontade popular, democrática, revolucionária, de transformação social radical. Sem duvida, os limites ecológicos do planeta são um limite objetivo para o capitalismo; mas podemos imaginar um pesadelo no qual o capitalismo continuará vigente entre os sobreviventes de uma catástrofe ecológica sem precedentes (como o aquecimento global). Uma alternativa radical, como o ecossocialismo, só poderá realizar-se, se surgir, a partir das contradições do sistema, uma profunda aspiração popular anticapitalista, ao mesmo tempo social e ecológica.

No Brasil, a esquerda divide-se agora entre apoiar ou não o PT. Os que não apoiam, geralmente têm motivações teóricas, querem manter-se fiéis aos ideais socialistas. Como lidar com um cenário político como o nosso, resistindo ao conservadorismo, se a maior força organizada contra a direita é um governo que já não se coloca há tempos como anticapitalista?

Para os socialistas e os anticapitalistas é realmente difícil “apoiar” este governo, que se tem caracterizado por uma política económica e social neoliberal, profundamente antipopular, e por concessões ilimitadas aos bancos, ao capital financeiro, aos latifundistas. Não é necessário apoiar o governo de Dilma Rousseff para nos opormos às manobras golpistas da direita, às tentativas de “golpe legal” via impeachment contra uma Presidenta democraticamente eleita pelo sufrágio universal, ou aos clamores reacionários dos partidários de um retorno dos militares ao poder. A corrupção nas altas esferas existe, é evidente, mas contamina todos os partidos, a começar por aqueles que agora pretendem capitanear uma demagógica campanha de “limpeza”: o PSDB, o PMDB, etc. Não há contradição, para os socialistas, em defender a democracia contra as ofensivas reacionárias, fundamentalmente antidemocráticas, e combater as políticas neoliberais do governo. Quanto à corrupção, só desaparecerá com a supressão do capitalismo… De imediato, uma reforma política radical, que acabe com as subvenções empresariais aos candidatos, poderia limitar algumas das suas manifestações mais nefastas.

O que causou esse levante conservador, essa perda de legitimidade da esquerda? Temos movimentos parecidos nos EUA, na Europa. O que isso significa?

Existe, com efeito, uma onda conservadora planetária, mas que toma formas diferentes segundo as regiões e os continentes. Em algumas regiões como a Índia e o Oriente Médio observa-se um espetacular reforço do mais reacionário fundamentalismo religioso. Na Europa e Estados Unidos trata-se de uma onda nacionalista, xenófoba, racista, de ódio aos imigrantes – latinos nos Estados Unidos, muçulmanos na Europa. Na América Latina o conservadorismo é geralmente de caráter oligárquico neoliberal, mas podendo tomar formas autoritárias e golpistas, como há anos atrás nas fracassadas tentativas de golpe na Venezuela e Bolívia, e mais recentemente nos golpes pseudo-“legais” nas Honduras e no Paraguai. Assim como, atualmente, no Brasil, com a tentativa de derrubar, por um golpe “parlamentar” ou militar, a Presidenta democraticamente eleita.

Em muitos países, a esquerda – de tipo socialdemocrata, ou social-liberal – perdeu legitimidade pela sua adaptação ao sistema, a sua aplicação das velhas receitas neoliberais, e a sua subserviência aos interesses do capital financeiro. A França é um exemplo evidente disto e, em parte, é também o caso do Brasil, embora haja diferenças importantes.

Ainda existe espaço para projetos ideais de sociedade, para a utopia? Qual a importância disso?

Como dizia Max Weber, que não tinha nada de marxista, o capitalismo é uma jaula de aço, que acaba com a liberdade humana. Por isto sempre aparecem, mais cedo ou mais tarde, movimentos libertários de resistência anti-sistémica. Sem negar a avassaladora onda conservadora, não podemos ignorar que em muitos países forças de esquerda, com propostas socialistas, ou anti-neoliberais, têm tido um significativo apoio popular, em particular entre a juventude. É o caso de Bernie Sanders, nos Estados Unidos, que tem suscitado, em torno das suas propostas socialistas, uma mobilização entusiasta sem precedente, na juventude e entre muitos trabalhadores; embora haja pouca probabilidade que consiga impor-se como candidato contra o aparelho do Partido Democrata (alinhado com a candidata do sistema, Hillary Clinton) pode dizer-se que é o socialista mais popular na historia dos Estados Unidos depois de Eugene Debs, que havia conseguido um certo apoio no inicio do século 20. O significativo voto pelo Bloco de Esquerda (anticapitalista) em Portugal – levando à queda do governo de direita – e pelo Podemos (anti-neoliberal) na Espanha são outros exemplos. No caso da Grécia, a vitória de Syriza (Coligação da Esquerda Radical), embora tenha terminado com uma capitulação diante do “golpe bancário” da Comissão Europeia, é também um indicativo da revolta contra o neoliberalismo.

Os projetos ideais de sociedade, as utopias socialistas e revolucionárias – como a proposta ecossocialista – são importantes, são essenciais mesmo, como bússola política, horizonte histórico, ou “principio esperança”, como diria o filosofo “marxista utópico” Ernst Bloch. Mas só terão futuro se conseguirem enraizar-se nas lutas concretas, aqui e agora, contra o sistema, nas resistências populares anti-neoliberais ou anticapitalistas. Por exemplo, nas mobilizações socio-ecológicas indígenas contra as multinacionais mineiras, nas lutas dos trabalhadores contra a ditadura patronal, nas lutas de jovens pelo transporte publico gratuito, no combate dos sem-terra e sem teto, na luta das mulheres pelo direito de dispor do seu corpo, nas mobilizações anti-racistas, e muitas outras.

Apesar da atual crise da esquerda na América Latina, ainda acredito que este continente é o lugar onde mais possibilidades existem para esta confluência entre a perspetiva socialista/revolucionaria e as lutas sociais concretas. Afinal, o ecossocialismo pode apoiar-se nas tradições comunitárias populares, em particular nas tradições indígenas de vida comunitária e de respeito pela Mãe Terra.

Estamos mais perto de propagar a ideia do ecossocialismo do que há vinte anos atrás, ou o regresso conservador afeta também a força do ambientalismo?

O ecossocialismo tem uma influência e um impacto social e político muito maior hoje, do que há vinte anos atrás. Existem hoje forças que se reclamam do ecossocialismo na Europa – em particular na França – nos Estados Unidos, na China, e na América Latina, em particular no Brasil. Estas forças – partidos, redes, associações, revistas, movimentos sociais – não existiam há vinte anos atrás, ou não se referiam ao ecossocialismo.

Sem dúvida a onda conservadora é um obstáculo, mas o problema principal é outro: nestes vinte anos, a crise ecológica, e em particular o processo de mudança climática, tem se acelerado muito mais rapidamente do que os avanços do ecosocialismo… É uma corrida contra o tempo… Como dizia Walter Benjamin, a revolução não é a locomotiva da história, ela é a humanidade que puxa os travões de urgência para parar o comboio! Somos todos passageiros de um comboio suicida que se chama civilização capitalista/industrial moderna; este comboio avança a uma rapidez crescente em direção a um terrível abismo: a catástrofe ecológica, o aquecimento global, a subida do nível do mar submergindo as principais cidades da vida humana. O desafio é puxar os freios da revolução ecossocialista e parar este comboio antes que seja tarde demais…


Artigo publicado no Blog da Boitempo.