Louise Michel e os 150 anos da Comuna de Paris

02 de maio 2021 - 9:55

Louise Michel foi uma das figuras-chave da Comuna de Paris, esses 72 dias de revolução, de poder do povo e de verdadeira democracia, reprimida com sangue pela oligarquia. No livro “Mémoires”, dá o seu testemunho de lutadora incansável pelas causas emancipatórias do seu tempo. Por Álvaro Arranja.

porÁlvaro Arranja

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Louise Michel em 1880.

Nas “Mémoires” de Louise Michel, publicadas em 1886 (seguimos a edição de 1998, das Éditions Sulliver) estamos diante de um novo género literário: a autobiografia de ativistas que se desenvolveu na segunda metade do século XIX. Louise escreve numa época em que poucas mulheres afirmam ser historiadoras ou ousam compor uma obra política, já que esses dois campos estão reservados ao discurso masculino. As “Mémoires”, são essencialmente uma crítica da sociedade capitalista e o testamento político e público de uma mulher que deixa para seus leitores, amigos ou inimigos, o relato da sua vida como militante revolucionária. Certamente um livro a merecer uma tradução portuguesa.

Filha ilegítima de uma criada e do filho do patrão, Louise Michel chega a Paris com 26 anos, como professora estagiária. Irá dedicar grande parte de sua vida ao que considera a maior luta: a igualdade na educação.

Apaixonada pelo trabalho, diz-nos nas “Mémoires” que “a tarefa dos professores, esses obscuros soldados da civilização, é dar ao povo os meios intelectuais para se revoltar.”

Em Paris, instala-se em Montmartre, onde vive com dificuldades, já que tinha sido afastada do ensino público por recusar o juramento de fidelidade a Napoleão III (“em Montmartre vivi dias de miséria; como todas as que tinham recusado prestar juramento ao Império”).

Irá inevitavelmente ligar-se ao meio revolucionário parisiense: em 1869, torna-se secretária da Liga Democrática de Moralização, destinada a ajudar as operárias de Paris.

Os direitos da mulher

A luta pelos direitos da mulher, causa pouco presente no discurso público oitocentista, será uma componente fundamental dos seus ideais revolucionários.

“Se a igualdade entre os dois sexos fosse reconhecida, seria uma brecha na estupidez humana”, escreve nas “Mémoires”.

"Mémoires" de Louise Michel de 1886 (capa do livro das Éditions Sulliver de 1998)

Sublinha especialmente a desigualdade na educação como forma de manter a supremacia masculina. “Nunca compreendi que exista um sexo ao qual se tenta atrofiar a inteligência(...) As raparigas educadas com tolices, são propositadamente desarmadas, para melhor serem enganadas: é esse o objetivo. É como se fossem atiradas à água depois de as ter impedido de aprender a nadar.” Certamente pensando na censura feita a todas as matérias que permitissem uma elementar educação sexual, Louise Michel constata que “sob o pretexto de conservar a inocência da jovem, deixam-na sonhar, numa ignorância profunda, com coisas que não lhe provocariam nenhuma estranheza se lhe fossem ensinadas como simples questões de botânica ou de história natural”.

Constata ainda que existem questões que afetam as mulheres para além da sua posição de classe. Refere existirem “mercados onde se vendem, na rua, as filhas do povo, enquanto as filhas dos ricos são vendidas pelo dote. Uma toma-a quem quer; a outra é dada a quem se quer. A prostituição é a mesma.”

“Escravo é o proletário, escravo acima de todos é a mulher do proletário.

Em toda a parte, o homem sofre com a sociedade maldita; mas nenhuma dor é comparável à da mulher.

Na rua ela é uma mercadoria.

Nos conventos, onde ela se esconde como num túmulo, a ignorância aniquila-a, as regras engolem-na na sua engrenagem (...) Em casa o fardo esmaga-a.”

Louise termina este capítulo, questionando os homens que lutam, ao lado das mulheres, por uma nova sociedade.

“Será que ousarão tomar partido pelos direitos das mulheres, quando os homens e mulheres tiverem conquistado os direitos de humanidade?”

A violência sobre os animais

Igualmente revelador do pensamento inovador de Louise Michel na sua época, é a preocupação com os maus tratos aos animais.

Escreve nas “Mémoires”, estar “na base da minha revolta contra os poderosos, desde as minhas mais precoces recordações, o horror das torturas infligidas aos animais”.

Para Louise, “desde a rã que os camponeses cortam em duas, deixando-a ao sol (…) até ao cavalo vítima dos cornos dos touros, o animal sofre, lamentavelmente, o suplício infligido pelo homem.”

Esta violência transmite-se para as relações entre os homens. “Quanto mais o homem é feroz para o animal, mais é feroz para os homens que domina.”

Louise Michel relaciona as origens da sua revolta contra violências feitas aos animais, com a sua repulsa pela violência e as injustiças que também atingiam os seres humanos. “Das crueldades que vemos cometer sobre os animais, do aspeto horrível da sua condição, data a minha compreensão dos crimes violentos na sociedade”.

Montmartre

No bairro de Montmartre, onde vivia e era professora, Louise vai estar no centro dos acontecimentos que se sucedem após a derrota de Napoleão III, na guerra franco-prussiana, em 1870.

Louise é eleita presidente do Comité de Vigilância Cidadã do 18º Bairro e vai ter um papel decisivo, quando os parisienses recusam render-se ao exército de Bismark, como tinha feito o governo da recém-proclamada III República francesa.

Nas “Mémoires” esclarece que “os comités de vigilância de Montmartre, não deixaram ninguém sem asilo ou sem pão. O 18º Bairro era o terror dos açambarcadores (…) Quando se dizia: Montmartre vai descer! Os reacionários escondiam-se nos seus buracos.”

Canhões de Paris em Montmartre. Louise Michel tem papel importante na sua defesa em 18 de março de 1871.

No momento decisivo de 18 de março de 1871, quando o governo reacionário de Thiers pretende retirar de Paris os canhões pagos pela Guarda Nacional (força armada dos cidadãos de Paris desde a Revolução Francesa), estacionados no alto de Montmartre (onde hoje se situa a igreja do Sacré-Coeur, construída depois para “limpar os pecados” da Comuna), defronta a oposição popular, com Louise Michel a liderar a mobilização que leva os soldados a desobedecer aos seus oficiais.

Diz Louise que “em 18 de março, no alto de Montmartre (…) subia um formigueiro de homens e mulheres (…). O exército levantou as coronhas das espingardas, em vez de arrancar os canhões franceses aos guardas nacionais e, sobretudo, às mulheres que os cobriam com os seus corpos; os soldados compreenderam, desta vez, que era o povo que defendia a República.”

Após o 18 de março, o governo abandona Paris. O povo e a sua Guarda Nacional defende a cidade, cercada a leste e norte pelas tropas da Prússia (agora já Alemanha unificada proclamada em Versailles), a sul e oeste pela tropas do governo de Thiers, a quem os alemães tinham enviado milhares de soldados prisioneiros para reconstruir o seu exército.

Louise Michel com a farda da Guarda Nacional (cliché Fontange, 1871 - Musée de l´Histoire Vivante de Montreuil).

A Comuna

A 26 de março, em eleições livres, é eleita a Comuna, proclamada a 28, no “Hotel de Ville”. Apesar da curta duração, esboça a construção de uma nova sociedade. Os direitos dos trabalhadores, a habitação, a educação, a assistência social, são preocupações fundamentais dos “communards”.

Louise Michel vive o seu encontro com a história, como lutadora incansável pela revolução.

“Durante os dias da Comuna, só passei uma noite com a minha pobre mãe. Dormia em qualquer lugar, quando não havia nada mais urgente.”

Isso aconteceu com muitas mulheres da Comuna que não deixaram testemunho escrito, como Louise Michel o fez em muitos livros e artigos.

“A reação teve tantos inimigos mulheres como homens (…) a mulher, pretensamente de coração fraco, sabe melhor dizer que o homem: É necessário! Sente-se a desfalecer, mas continua de pé. Sem ódio, sem cólera, sem autocompaixão, mesmo com o coração a sangrar.

Assim foram as mulheres da Comuna…”

Louise está em várias frentes. Serve no auxílio aos feridos, mas também combate nas barricadas. É soldado no 61º regimento de Montmartre.

“Tinha, para além das minhas roupas de mulher, uma farda de soldado e uma de guarda nacional (…) e combati sem que me acontecesse mais nada que um raspão de bala num punho, o chapéu crivado de balas e uma entorse…”

Mas, como refere Louise Michel, “a Comuna, cercada por todos os lados, só tinha a morte no horizonte”.

Prisão de Louise Michel em 24 de maio de 1871 (quadro de Jules Girardet - Musée d'art et d'histoire Paul Eluard de Saint-Denis)

O governo reacionário de Thiers, com o apoio da Alemanha de Bismark (tinham esquecido a guerra, unindo-se para esmagar o povo de Paris), constituíram um exército poderoso, capaz de forçar as defesas da Comuna. Em 21 de maio de 1871 penetram em Paris e iniciam a “Semana Sangrenta”, até 28.

“Contaram-se cerca de trinta e cinco mil fuzilados; mas e aqueles que se ignoram? Houve dias em que a terra devolveu os cadáveres.

As mulheres, nos dias de maio, construíram e defenderam a barricada da Place Blanche. Ali aguentaram até à morte.”

Por toda a Paris se prendia e fuzilava. Louise não é esquecida…

“Escapava sempre a tudo, nem sei como; finalmente, prenderam a minha mãe, ameaçando fuzilá-la se não me entregasse. Tive de tomar o seu lugar…”

É levada para a prisão de Versailles.

“Depois de me terem dito que me fuzilariam no dia seguinte à minha chegada, disseram-me que seria mesmo nesse fim de tarde, e não sei porque não o fizeram, já que fui insolente, como se deve ser na derrota contra vencedores ferozes.”

Louise Michel na prisão de Versailles em 1871. No cartão lê-se "Louise Michel chefe dos incendiários" (Museu Carnavalet).

Em Versailles decorria o conselho de guerra contra os principais dirigentes da Comuna, incluindo o seu companheiro Théophile Ferré, executado em 28 de novembro de 1871.

“Tínhamos conseguido, Ferré e eu, trocar algumas cartas nas nossas prisões; por isso, devido a uma denúncia, a Prefeitura de Polícia enviou-me para Arras, onde me recordaram o dia da minha execução. Estava à espera.”

Se não são cobardes, matem-me…

Em dezembro de 1871, Louise Michel é julgada em Conselho de Guerra. Em anexo às “Mémoires”, é transcrito o processo tal como foi publicado na Gazette des Tribunaux.

A acusação contra Louise é longa, apresentando-a como uma das principais figuras da Comuna.

“Entre aquelas que pareciam exercer uma influência considerável em certos bairros, destacava-se Louise Michel, ex-professora primária em Batignolles, que demonstrava uma devoção sem reservas ao governo insurrecional.”

Os acontecimentos de 18 de março não são esquecidos.

“O papel de Louise Michel no drama sangrento do Alto de Montmartre.

Foi cúmplice da prisão dos infortunados generais Lecomte e Clément Thomas.

- Não os deixem fugir! – gritou ela com todas as forças, aos miseráveis que os rodeavam.”

A liderança de Louise nas questões dos direitos das mulheres, não podia faltar na acusação.

“Secretária da sociedade dita de Moralização das Operárias pelo Trabalho, Louise Michel organizou o famoso Comité Central da União das Mulheres, bem como os comités de vigilância encarregados de recrutar socorristas e, no momento decisivo, trabalhadoras para lutar nas barricadas, ou mesmo incendiárias.”

De seguida cita um manifesto da associação, cuja autoria atribui a Louise Michel, onde se diz que “a Comuna, representando os princípios internacionais e revolucionários dos povos, transporta os germes da revolução social.”

Outro dos “crimes” de Louise Michel era, como professora, defender “doutrinas de livre pensamento, fazendo os seus alunos cantar poesias de sua autoria.”

A sua participação como combatente, de armas na mão, ao lado dos homens é outro “crime”.

“Esteve em Issy, em Clamart e em Montmartre, combatendo na primeira linha…”

Cita como prova o jornal Le Cri du Peuple (O Grito do Povo), de 14 de abril de 1871, que diz:

“A cidadã Louise Michel, que combateu valorosamente em Moulineaux, foi ferida no Forte de Issy.”

A transcrição do “interrogatório da acusada”, revela logo no início a clareza e a frontalidade de Louise.

“Pertenço inteiramente à revolução social e declaro aceitar a responsabilidade de todos os meus atos.”

Sobre os incêndios, usados como defesa contra a invasão de Paris, na “semana sangrenta”, Louise é frontal:

“Quanto ao incêndio de Paris, sim, participei. Queria opor uma barreira de chamas aos invasores vindos de Versailles.”

A propósito da acusação de ser cúmplice da Comuna, declara:

“Dizem-me que sou cúmplice da Comuna! Certamente que sim, já que a Comuna queria antes de tudo a revolução social e a revolução social é o meu mais caro desejo. Mais ainda, tive a honra de ser uma das promotoras da Comuna…”

Referindo-se à acusação de se ter proposto assassinar Thiers, o chefe do governo de Versailles, Louise não deixa dúvidas:

“Um dia propus a Théophile Ferré invadir a Assembleia. Queria duas vítimas: Thiers e eu.”

No final, o oficial responsável pela acusação, o capitão Dailly, conclui:

“Peço ao Conselho de Guerra que separe a acusada da sociedade, para a qual ela é um perigo permanente.”

Louise Michel, na sua derradeira intervenção, declara:

“Já que parece que todo o coração que bate pela liberdade, só tem direito a um pedaço de chumbo, reclamo um desses pedaços!

Se não são cobardes, matem-me…”

Louise Michel, no jornal L`Humanité de 30.01.1921

Deportação

Condenada à deportação num recinto fortificado, Louise Michel embarca para a distante Nova Caledónia, colónia francesa no Oceano Pacífico. A ilha é habitada pelos Canacas (que se revoltam contra o poder colonial). Nas “Mémoires” recorda-os, quando é autorizada a dar aulas em Nouméa, capital da ilha:

“Em Nouméa, pude, na minha escola, conhecer a raça canaca. Não são ignorantes, nem cobardes (…) A curiosidade do desconhecido é igual à nossa…”

Quando recorda os anos de deportação, diz:

“São, sobretudo, os meus amigos negros que recordo, selvagens de olhos brilhantes e coração de criança. Gostava e gosto deles e, aqueles que me acusavam, no tempo da revolta, de desejar que conquistassem a liberdade, tinham razão.”

Em 1880, os deportados da Comuna são amnistiados (solução pela qual luta o escritor Victor Hugo que dedica a Louise um poema).

“Regressei da deportação, fiel aos princípios pelos quais morrerei”, escreve nas “Mémoires”.

Quando voltou a Paris, foi recebida por uma numerosa multidão. Prosseguiu o seu combate contra a injustiça, percorrendo a França e outros países da Europa, apoiando lutas, proferindo conferências, escrevendo livros e artigos. Por várias vezes presa, retoma sempre a estrada para levar a sua mensagem revolucionária. Quando morre, em 1905, é já uma figura lendária do movimento operário.

Álvaro Arranja
Sobre o/a autor(a)

Álvaro Arranja

Professor e historiador.