Os dias da Revolução

A libertação dos presos políticos na revolução de Abril

24 de abril 2021 - 12:21

A repressão da polícia política, com milhares de presos, muitos dos quais torturados ou mortos, foi um elemento decisivo para garantir a longa duração da ditadura. Abrir as cadeias da polícia política marcava a rotura definitiva com o passado… Por Álvaro Arranja.

porÁlvaro Arranja

PARTILHAR
José Tengarrinha libertado da prisão de Caxias.
José Tengarrinha libertado da prisão de Caxias. Vida Mundial 03.05.1974.

A libertação dos presos políticos, já na madrugada do dia 27, foi um dos momentos decisivos da revolução de 25 de Abril de 1974. A repressão da polícia política (PVDE/PIDE/DGS), com milhares de presos, muitos dos quais torturados ou mortos, foi um elemento decisivo para garantir a longa duração da ditadura. Abrir as cadeias da polícia política, marcava a rotura definitiva com o passado...

Para conhecer esse momento, iremos utilizar a imprensa da época que dá grande relevo ao acontecimento, sobretudo à libertação dos presos das cadeias de Caxias e Peniche.

Na tarde de 26, já o vespertino Diário de Lisboa titula a toda a largura da 1ª página, “Caxias Caiu – Libertos os Presos – Detida a DGS/PIDE”. Era uma das preocupações fundamentais de todos os que, desobedecendo ao pedido transmitido pela rádio nos comunicados do Movimento das Forças Armadas (MFA), se manifestavam nas ruas em apoio dos militares revoltosos.

O jornal noticia que “a cadeia política da DGS/PIDE em Caxias foi tomada pelas oito e meia da manhã de hoje (26 de abril), por uma força de pára-quedistas”.

 

Segundo O Século, de 27 de abril, os jornalistas foram então convidados a entrar na prisão, “o que fizeram exatamente às nove horas e dez minutos”. Vinte minutos depois, “começaram as primeiras manifestações de alegria: das janelas das celas agitavam-se os braços dos prisioneiros, enquanto se faziam ouvir gritos de satisfação”.

Minutos mais tarde, "um tenente da GNR que comandava a força que se rendera, acompanhado dos comandantes das companhias que forçaram a rendição e de uma escolta de soldados armados de espingardas automáticas G-3, penetrou na prisão, abrindo, uma a uma, as celas dos prisioneiros, que os abraçavam alegremente”.

Muitos presos estavam em “regime de isolamento total, tendo recebido com estupefação total a notícia de que o regime caíra”.

No pátio, o repórter de O Século registou as declarações de alguns presos. José Manuel Tengarrinha afirmou que “nos últimos dias se notava um certo abrandamento e até um clima de desespero entre os agentes e inspetores da DGS”. O jornalista Figueiredo Filipe declarou ter sido submetido a “torturas do sono e a interrogatórios constantes, dia e noite”, o mesmo tendo acontecido com Saldanha Sanches e Mateus Branco.

A libertação, porém, não seria imediata. Segundo o jornal A Capital (de 27 de abril), “a demora na libertação foi justificada pelo desejo de cumprir com rigor a determinação da Junta de Salvação Nacional: era preciso distinguir aqueles que se encontravam detidos por motivos ideológicos dos que eram réus de crimes comuns”.

Helena Neves e Elvira Nereu, presas políticas libertadas em Caxias. A Capital 27.04.1974

Era uma ideia do general Spínola, de difícil concretização prática, mas que iria atrasar o processo de libertação.

“Ou todos ou ninguém”, foi a resposta dos presos a esta exigência, segundo o República (também de 27 de abril), jornal vespertino ligado à oposição democrática.

Para resolver a questão, foi constituída uma comissão de advogados, de que faziam parte "Manuel João da Palma Carlos, Francisco Salgado Zenha, José Manuel Galvão Teles, Francisco Sousa Tavares, Jorge Sampaio, Xencora Camotim, Vítor Wengorovius e José Augusto Rocha, todos eles com constituintes seus detidos no Forte. Outros elementos, da CDE e da Comissão Nacional para a Libertação dos Presos Políticos integravam a comissão”. Ainda segundo o República, os advogados “membros da comissão, nomeadamente Palma Carlos e Xencora Camotim, defenderam, com notável argumentação, a tese de que os presos considerados sob penas de delito comum, tinham praticado atos com fins perfeitamente políticos”.

Uma alteração positiva para facilitar o diálogo verifica-se quando assume o comando das tropas destacadas na prisão de Caxias um oficial que tinha o filho ali preso. Refere O Século (de 27 de abril) que “cerca das 11 horas assumiu o comando das forças o coronel Mário Abrantes da Silva que na ocasião pode abraçar pela primeira vez, em 14 meses, o seu filho, o estudante Mário Carneiro Abrantes da Silva”.

Entretanto, a Junta de Salvação Nacional anuncia (segundo o Diário Popular de 27 de abril) querer resolver o assunto, “através de uma comissão de oficiais do Movimento das Forças Armadas e de advogados, a fim de promoverem a libertação dos presos exclusivamente políticos e tomar as providências para que os presos por delitos comuns fossem imediatamente julgados, pelo competente poder judicial”.

Porém, tal como defendiam os advogados, a distinção entre crimes políticos e comuns não era exequível. Após o “exame dos processos individuais, surgiu, no entanto, uma dificuldade derivada da interpretação dada à definição de crimes políticos e comuns”. Chegou-se a um impasse criador de nervosismo e agitação entre os que, familiares ou outros, aguardavam e se manifestavam pela libertação dos presos, no exterior da cadeia de Caxias.

Por fim, seguindo ainda a notícia do Diário Popular, “o coronel Dias de Lima (ajudante de campo do general Spínola) que, perante as dificuldades surgidas na apreciação dos processos, seguira para a Cova da Moura, a fim de consultar a Junta de Salvação Nacional, voltou, faltavam cinco minutos para a meia noite, com a notícia de que os presos seriam libertados, na totalidade e imediatamente”.

Libertação dos presos de Caxias

Era a festa da liberdade. Diz O Século (de 27.04.1974) que “a partir daí, tudo o que se seguiu foi de tal maneira extraordinário, uma festa de tal maneira espontânea, com centenas e centenas de pessoas a aclamar os recém-libertados que, só quem viveu aqueles momentos pode avaliar de quanta amargura existia em muitos corações portugueses”. No exterior da cadeia de Caxias, “um longo cortejo de pessoas que gritavam à uma 'o povo unido jamais será vencido', formou-se até à auto-estrada. Gritos de liberdade de imprensa, por entre outras reivindicações de liberdades fundamentais, ficaram a ecoar no local”.

O República (27.04.1974) resume os acontecimentos:

“À 1 hora de hoje não havia presos políticos em Caxias. A libertação começou à meia noite e trinta. Meia hora depois saíam do hospital-prisão, onde estavam internados, os quatro últimos lutadores da Liberdade: José Magro (20 anos nas masmorras fascistas), António Dias Lourenço, Rogério Rodrigues Carvalho e Miguel Camilo. Meia-hora antes e perante o coro impressionante de milhares de pessoas, postadas à entrada do Forte, e a gritarem 'o povo unido jamais será vencido', os restantes 78 presos tinham saído em liberdade. Palma Inácio, levado em ombros, fora, como os restantes, delirantemente aclamado”.

Depois da libertação, a imprensa regista as declarações de vários presos, mais ou menos conhecidos. É o caso de Manuela Gil. Escreve A Capital (27.04.1974):

“Manuela Gil é uma rapariguinha. Sorridente, de um sorriso feito de nervos, aguarda junto de uma companheira de cela e de familiares a hora de poder sair com a roupa e os livros que teve consigo durante 21 meses de prisão. 'Faltavam-me 3 meses para cumprir a pena de 2 anos. Sou empregada de escritório e fui condenada por alegada participação no movimento operário português'”.

Já José Manuel Tengarrinha (historiador, jornalista e dirigente da CDE, coligação oposicionista à farsa eleitoral durante a ditadura), várias vezes preso e torturado pela PIDE, declara à imprensa:

“Este momento é verdadeiramente emocionante, ainda que inesperado para todos nós, embora não nos deva surpreender a ação das Forças Armadas, em virtude da total incapacidade do governo anterior. A libertação dos presos políticos, foi já um passo importante dado pela Junta. Enquanto esta estiver ligada aos verdadeiros interesses do povo, pode contar incondicionalmente com o apoio de todas as forças democráticas do País”.

Uma foto de A Capital regista o momento da libertação das jornalistas Helena Neves e Elvira Nereu, que estavam presas na cadeia de Caxias.

O Século (27.04.1974), recolhe declarações de Hermínio da Palma Inácio (responsável pelo desvio de um avião da TAP para lançar panfletos sobre Lisboa, em 1961, e dirigente da LUAR) que declara:

“Isto é maravilhoso!...Vai ser um Portugal livre (…) Vivo na clandestinidade desde 1947!”.

Palma Inácio na cela de Caxias no dia da libertação. O Século 27.04.1974 (foto de Novo Ribeiro)

Um dos presos em Caxias é o jornalista Fernando Correia, do Diário de Lisboa. Logo após a libertação, escreve um depoimento para o seu jornal, do dia 27 de abril, relatando a experiência que acabava de viver. Estando em regime de isolamento, ignorava o que estava a ocorrer:

“No isolamento da minha cela, onde sempre permaneci, excepto nas horas de interrogatório – quantas? - a que, até ao momento, tinha sido sujeito, um dos meus passatempos era colocar-me à janela. O que distinguia através das grades era a única possibilidade de contacto, ainda que à distância, com o mundo exterior”.

Assim se apercebeu de algo de estranho, no dia 25:

“ao fim da tarde de quinta-feira, o reduzido movimento de automóveis na rodovia que liga a marginal à auto-estrada intrigava-me (…) na mesma tarde, os guardas da GNR (…) foram reforçados e surgiram de capacetes de combate (…) à noite, uma voz de um preso vinda de outra janela, fora do isolamento, gritava que, segundo parecia, um golpe de estado havia derrubado o governo.”

A incerteza sobre o rumo dos acontecimentos era total:

“nas horas seguintes, porém, a expetativa transformou-se em angústia. Quem tomara conta da situação? Que militares tinham dado o golpe?Tratava-se de um abrandamento do regime ou mesmo a sua abolição ou, pelo contrário, do seu endurecimento? (…) os momentos mais dramáticos foram aqueles em que admiti (…) que exercessem represálias sobre os presos”.

Finalmente a libertação dissipou todas as dúvidas:

“os momentos que se seguiram à nossa saída das celas, com longos abraços, os gritos de contentamento, as lágrimas de emoção incontidas, foram inesquecíveis”.

Libertação na cadeia de Peniche

No forte de Peniche estava a outra cadeia da PIDE/DGS. Ali se concentraram muitos manifestantes para defender a libertação dos presos políticos.

Libertação dos presos de Peniche. O Século 27.04.1974

O Século (de 27 de abril), jornal matutino, ainda sem conhecer as notícias da libertação, dá conta da decisão dos presos políticos de Peniche:

“Ou todos ou nenhum - eis a posição em que, a partir de ontem, se colocaram os detidos no Forte de Peniche, ao saberem que uma comissão da Junta de Salvação Nacional se deslocará aquela prisão”.

Durante o dia 25 souberam que algo acontecia porque tinham acesso à televisão. Tiveram receios de ser utilizados como reféns pelos agentes da PIDE. Segundo declarou um dos presos (não identificado) ao Diário Popular, de 27 de abril:

“Estávamos dispostos a resistir até ao fim, caso surgisse alguma tentativa de nos dizimar. Utilizando mesas, cadeiras, colchões e os mais diversos objectos, fizemos uma barricada”.

Tal como em Caxias, só na madrugada de 27 se dá a libertação dos presos de Peniche. O jornal República, de dia 27, relata a libertação:

“O primeiro preso a sair do forte foi Dinis Miranda, passavam 23 minutos da meia-noite. Os últimos presos a serem libertados, às 3 horas, foram: Rui d`Espiney, de 30 anos; Filipe Aleixo, de 70 anos; Francisco Martins Rodrigues, de 47 anos”.

Na imprensa estrangeira

Usando ainda a imprensa como fonte para o relato dos acontecimentos, é curioso constatar o reflexo da libertação dos presos políticos em alguns jornais estrangeiros.

A libertação merece título destacado na 1ª página do diário italiano L`Unitá, (28.04.1974), jornal do PCI:

“PORTUGAL – INICIADA A LIBERTAÇÃO DOS PRISIONEIROS POLÍTICOS ANTIFASCISTAS

Cenas de emoção frente às prisões – Presos os agentes da famigerada polícia política (a ex-PIDE)”.

Uma foto dos presos de Caxias ilustra o acontecimento, com a legenda:

“O comovedor encontro entre os primeiros presos políticos libertados e os familiares, no exterior de uma prisão, sob o olhar de duas sentinelas”.

Libertação dos presos de Peniche. O Século 27.04.1974

Exemplo do relevo dado aos acontecimentos portugueses em Espanha, é a cobertura do jornal La Vanguardia, de Barcelona. Histórico jornal da Catalunha, estava sob o controle do regime franquista (que o rebatizou de La Vanguardia Española), mas não era um órgão oficioso da ditadura. O jornal enviou um correspondente a Lisboa (Manuel Leguineche) e dá um relevo assinalável à libertação dos presos (que em Espanha continuavam nas prisões) em Caxias, ilustrado com uma foto. Diz o enviado especial do La Vanguardia (29.04.1974):

“Milhares de lisboetas acudiram ontem à prisão-cidadela de Caxias, para receber com flores e vinho verde os presos políticos. Quando os presos começaram a sair, houve vivas, lágrimas e abraços. Toda uma compreensível emoção transbordou debaixo dos plátanos e eucaliptos selvagens (…) vi como existia entre aqueles milhares de pessoas essa comunicação fácil dos dias alegres, cumprimentavam-se e felicitavam-se sem se conhecer, porque Caxias, nome triste, havia caído, os familiares e amigos estavam finalmente livres e os soldados recebiam, como no dia em que tomaram Lisboa, beijos e cravos”.

Álvaro Arranja
Sobre o/a autor(a)

Álvaro Arranja

Professor e historiador.