Esta é a pior situação dos últimos 20 ou 30 anos nos tribunais

10 de outubro 2014 - 22:38

O presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais falou ao esquerda.net sobre o impacto do crash do Citius e do novo mapa judiciário na vida dos cidadãos. Nesta entrevista, Fernando Jorge explica as razões do protesto dos funcionários judiciais, que até ao fim de outubro promovem greves em todas as comarcas.

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Fernando Jorge, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais.

O governo diz que o Citius já funciona num terço dos tribunais. Qual é o ponto atual da situação?

Há alguns tribunais, uns dez ou doze, onde a plataforma informática já teve um avanço. Ou seja, já foram transferidos alguns processos e a situação é diferente da que sucedia há umas semanas atrás. Todavia, isto ainda não é a regularização normal dessa ferramenta fundamental para o nosso trabalho, que é o Citius, porque ainda há processos em falta, há outros que foram transferidos mas faltam peças processuais, há algumas trocas de documentos… Enfim, há ainda aperfeiçoamentos que falta fazer a quase todos os processos que estão a ser transferidos. E isto inviabiliza o trabalho normal, como acontecia antes de 1 de setembro. É verdade que há um avanço, mas as deficiências encontradas são ainda muito significativas.

Os funcionários judiciais estão na linha da frente do contacto com os cidadãos. Qual o impacto que sentiram com este crash?

Os dois grupos que têm mais razão no meio disto - os funcionários que estão a sofrer e os cidadãos que não vêem os seus problemas resolvidos - acabam por chocar entre si. O cidadão vai ao tribunal e é com o funcionário que protesta, não é nem com o juiz e muito menos com o ministro ou os políticos lá nos gabinetes. Protesta ali na secretaria e ao balcão com os funcionários. Isto está a criar uma situação muito tensa nos tribunais.

Esta é uma situação complicadíssima. Sem risco de exagerar, devo dizer que esta é provavelmente a pior situação dos últimos 20 ou 30 anos nos tribunais, do ponto de vista da turbulência, da agitação, da confusão que tudo isto criou no funcionamento das secretarias e do sistema de justiça. Desde logo, naturalmente, para quem lá trabalha, com a falta da ferramenta fundamental para poderem trabalhar que é o Citius, com os processos em suporte de papel amontoados, sem se saber o que fazer deles, uma vez que é a plataforma que dá destino àqueles processos e os distribui pelos juízes.

Toda esta confusão tem criado uma enorme angústia e ansiedade nas pessoas que estão a trabalhar nos tribunais. Para os cidadãos a situação é muito grave, porque queriam ver as suas situações resolvidas. A abertura do ano judicial é a altura em que muitas das situações que ficaram pendentes de maio e junho são resolvidas durante o mês de setembro. Estamos a falar de situações que têm a ver com a vida das pessoas, com os tribunais de família e menores, tribunais criminais, tribunais de trabalho em que há situações de despedimentos, de acidentes de trabalho em que as pessoas têm verbas a receber e ficaram impossibilitadas durante este período - e nalguns casos ainda estão - de o fazer.

Depois há uma situação que acaba por ser perversa, embora compreensível: com os funcionários nesta situação de grande agitação e angústia e com os cidadãos nesta situação de grande revolta e protesto contra o governo, há um choque entre os dois. Os dois grupos que têm mais razão no meio disto - os funcionários que estão a sofrer e os cidadãos que não vêem os seus problemas resolvidos - acabam por chocar entre si. O cidadão vai ao tribunal e é com o funcionário que protesta, não é nem com o juiz e muito menos com o ministro ou os políticos lá nos gabinetes. Protesta ali na secretaria e ao balcão com os funcionários. Isto está a criar uma situação muito tensa nos tribunais.

Mas o motivo da vossa greve não tem a ver só com o caos dos últimos meses nos tribunais...

É verdade, temos uma série de situações socioprofissionais que se arrastam ao longo dos anos e tínhamos a intenção de os ter resolvido antes da entrada em vigor da reforma. Para isso pedimos uma reunião à ministra em maio e insistimos em junho, mas nem resposta obtivemos. E naquela altura, em vésperas das férias judiciais, não seria altura de avançar para o protesto, uma vez que não fomos recebidos para dialogar. Pensámos ainda em fazer uma greve de protesto no início de setembro, na abertura do ano judicial. Só que nós prevíamos aquilo que o Ministério não previu, que isto ia criar a situação que se veio a confirmar. Havia todas as condições para que isto corresse mal. Dizer que foi uma surpresa ou que foram surpreendidos, isso é conversa… Toda a gente sabia que as condições para que as coisas corressem mal no início de setembro estavam reunidas, e por isso não quisemos ser confrontados com uma acusação de boicote à abertura do ano judicial, ou que isto acontecia porque os funcionários estavam em greve. Esperámos que arrancasse o ano judicial e depois não podíamos esperar mais e avançámos para a greve.

A greve tem a ver sobretudo com a nossa indignação por não se resolverem alguns problemas que são reconhecidos por todos. Não são meras reivindicações corporativas. Um tem a ver com a falta de funcionários, que hoje em dia é reconhecida por nós, pelo Condelho Superior de Magistratura, pela Associação Sindical de Juizes, pela Procuradoria Geral da República e pela própria ministra da Justiça, que em declarações recentes reconhece que é preciso contratar mais funcionários.

A greve tem a ver sobretudo com a nossa indignação por não se resolverem alguns problemas que são reconhecidos por todos. Não são meras reivindicações corporativas. Um tem a ver com a falta de funcionários, que hoje em dia é reconhecida por nós, pelo Condelho Superior de Magistratura, pela Associação Sindical de Juizes, pela Procuradoria Geral da República e pela própria ministra da Justiça, que em declarações recentes reconhece que é preciso contratar mais funcionários. Aliás, para implementarem esta reforma no terreno fizeram um mapa das necessidades: tantos juízes, tantos procuradores da República e tantos funcionários. Os dois primeiros até estão a mais do que o número necessário. Mas os funcionários judiciais, o Governo diz que são precisos à volta de 7540, mas só há a trabalhar nos tribunais pouco mais de 6400. É o próprio Ministério que o assume e ninguém percebe porque é que não se abre um concurso para admitir esses mil funcionários. A outra questão tem a ver com os cargos de chefia nesses tribunais que foram criados. Cada secção tem de ter o seu juiz, o seu procurador, mas tem de ter também um escrivão que coordena o trabalho da secção. Mas não há… Neste momento o que estamos a fazer é pôr funcionários em substituição, ou seja, é pôr cabos a desempenhar funções de general. Ora, sem a preparação, sem o conhecimento, e até com algum compadrio nas nomeações dessas pessoas, que são nomeadas arbitrariamente pelos tribunais, criam-se situações desagradáveis. E o que nós queremos é que as secções funcionem conforme diz a lei, com escrivães e secretários devidamente qualificados e formados.

Também há a questão do regime de aposentação. Nós tínhamos um regime de aposentação excecional porque temos um regime de trabalho excecional - não recebemos horas extraordinárias quando é necessário ficar até às duas da manhã, as pessoas vêem isso quando há aqueles interrogatórios dos famosos que passam na comunicação social. Ora o funcionário que sai às duas da manhã ganha exatamente o mesmo que o que saiu às cinco da tarde. Não há qualquer pagamento de horas extraordinárias. Mas esse regime excecional entretanto acabou, tendo a Assembleia da República entendido que em 2012 e 2013 ainda se aplicava aos pedidos que entrassem neste ano esse regime de aposentação excecional. Em 2012 não houve problema, em 2013 a Assembleia da República, por unanimidade, votou essa excecionalidade para os oficiais de justiça. O que é que disse o presidente da Caixa Geral de Aposentações? "Foi um lapso, um engano da Assembleia, o legislador disse mais que o que queria dizer". Bem, isto é uma coisa perfeitamente ridícula num Estado de direito. A nossa ministra da Justiça inclusivamente fez um despacho a dizer que a intenção era manter esse regime e que a Assembleia tinha razão. Toda a gente está de acordo com isso, menos o Ministério das Finanças. Este é também o motivo que nos leva a esta paralisação como indignação por este tipo de atitudes.

Para além destas três questões óbvias que toda a gente compreende, há também o nosso estatuto socioprofissional. Tal como está a acontecer com os juízes e procuradores da República, em que foram criados grupos de trabalho para rever os seus estatutos, o nosso também precisa. Mesmo do ponto de vista técnico, com a nova reforma, o estatuto tem de ser alterado. Nós queremos que essa revisão ocorra o mais rapidamente possível, uma vez que se arrasta há três anos. E três anos para rever um estatuto é demais.

Qual é o vosso balanço de adesão à greve, que se vai prolongar até ao fim de outubro?

Por todas estas razões que acabei de descrever serem tão evidentes e sentidas no dia a dia do seu desempenho profissional, a adesão dos funcionários judiciais tem sido muito significativa. O primeiro de dia de protesto foi uma greve nacional que teve uma adesão da ordem dos 85% e agora temos tido adesões que, por exemplo em Aveiro ou Braga, até foram superiores às do primeiro dia. Tem sido uma greve bastante participada.

A lentidão da justiça era um dos aspetos que o memorando da troika prometia combater. Terminado o memorando, a justiça melhorou?

Bom, agora a justiça parece que até ficou mais lenta, porque há três meses que não funciona… Acho que a troika se meteu em assuntos que não percebe, e há muitos outros para além da justiça. Se calhar a troika devia ter centrado as suas atenções no funcionamento do sistema bancário, no que aconteceu com o BPN, com o BES e outros que estão para aí a ameaçar. Meteu-se em coisas que não sabe nem percebe e nós detetámos desde a primeira hora que a troika não tem um mínimo de conhecimento do funcionamento do sistema de justiça. Aliás, há organismos cá em Portugal que não o têm, quanto mais a troika… O Ministério das Finanças é um deles e algumas das medidas que têm tomado ultimamente em relação à Justiça, como esta questão da aposentação, mas também das promoções - revela um desconhecimento em relação ao sistema. A troika não adiantou nem atrasou nada relativamente ao sistema de justiça. Se esta reforma é por causa da troika, então o que a troika fez foi atrasar ainda mais o sistema de justiça.

E esta reforma do mapa judiciário, afinal veio aproximar ou afastar ainda mais os cidadãos da justiça?

O que era importante para que o sistema funcionasse era tornar a legislação mais simplificada, tornar o regime processual mais simplificado e mais ágil, dotar os tribunais de meios e equipamentos suficientes para poder dar resposta. Agora, fazer o que se fez - tirar os tribunais de junto das populações, em especial do interior - só irá contribuir para uma assimetria social e uma falta de coesão.

A resposta é óbvia: vem afastar mais os cidadãos da justiça. Tirar os tribunais do interior do país, obrigar as pessoas a viajar 120 e 130 quilómetros para se deslocarem a um tribunal é uma coisa perfeitamente absurda e que vai ter efeitos no futuro. O não funcionamento do Citius faz com que as pessoas ainda não se tenham apercebido da deslocalização que houve do sistema de justiça das suas zonas. Somos muito críticos em relação à matriz da reforma, achávamos que era necessário fazer algumas intervenções pontuais e cirúrgicas no funcionamento dos tribunais e no sistema de justiça.

O que era importante para que o sistema funcionasse era tornar a legislação mais simplificada, tornar o regime processual mais simplificado e mais ágil, dotar os tribunais de meios e equipamentos suficientes para poder dar resposta. Agora, fazer o que se fez - tirar os tribunais de junto das populações, em especial do interior - só irá contribuir para uma assimetria social e uma falta de coesão. Por exemplo, no Alentejo, o Tribunal de Família e Menores da área de Beja vai ficar em Ferreira do Alentejo. Uma pessoa de Barrancos que tenha de vir a Ferreira do Alentejo são mais de 100 quilómetros e terá de ir de véspera, caso tenha de lá estar às 9 da manhã, pois não há transportes públicos. Isto será multiplicado por todo o país, na zona das Beiras ou Trás-os-Montes e tem outro aspeto negativo, que é o de descredibilizar a Justiça. O cidadão perde a confiança nas instituições, é a representatividade do Estado que estava na área onde vive que desaparece. As pessoas ficam com um sentimento de abandono e aqui a Justiça presta um mau serviço à desejável coesão nacional e à justiça de proximidade.

Um colega meu dizia-me que podia ter sido aproveitada a instalação de contentores que nos trouxe esta reforma - por exemplo em Loures, em Vila Real ou em Faro - para tornar a justiça mais próxima dos cidadãos: bastava montar os contentores em camiões e andar com eles pelas localidades (risos). Se fizessem isso é que teriam uma justiça de proximidade, assim não.


Entrevista realizada por Luís Branco e Nino Alves.