Declan Kearney: “Sinn Féin tem de se preparar para referendo sobre reunificação da Irlanda”

17 de março 2024 - 12:16

Em entrevista ao Esquerda.net, o presidente nacional do Sinn Féin, Declan Kearney, falou sobre a importância de o partido assumir a liderança do governo no Norte da Irlanda e de, atualmente, ser a maior força política de toda a ilha. Por Mariana Carneiro.

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Foto publicada na conta de X de Declan Kearney, presidente nacional do Sinn Féin.

O Norte da Irlanda encontrava-se num impasse político desde a vitória do Sinn Féin nas eleições para a Assembleia Regional, realizadas em 2022.

Em fevereiro deste ano, o partido pôde, finalmente, conduzir Michelle O’Neill ao cargo de primeira-ministra, num território concebido, à partida, para impedir que tal acontecesse.

Como é que chegámos a este momento, com o Sinn Féin a liderar, pela primeira vez, o governo no Norte da Irlanda?

Em maio de 2022, houve uma eleição para a Assembleia Regional, que é a instituição política estabelecida ao abrigo do Acordo de Sexta-Feira Santa, o nosso acordo de paz.

Nesse ato eleitoral, o Sinn Féin surgiu, pela primeira vez, como o maior partido político do Norte da Irlanda. Obtivemos a maior percentagem de votos, e também o maior número de lugares na Assembleia Regional. Ao abrigo do acordo de paz, isso daria ao Sinn Féin o direito a ter o maior número de ministérios na governo de partilha do poder, e a nomear o primeiro-ministro.

No entanto, o unionismo tinha, antes dessa eleição, desmantelado as instituições, ostensivamente em oposição ao protocolo firmado ao abrigo dos acordos do Brexit negociados pelo governo britânico e pela Comissão Europeia.

Após a vitória do Sinn Féin, o unionismo recusou-se a restabelecer as instituições, apesar do povo se ter pronunciado através do voto democrático.

Ainda que a nomeação do primeiro-ministro não tenha ocorrido nessa altura, o resultado das eleições foi extremamente importante do ponto de vista simbólico, porque o Estado do Norte foi criado e concebido de forma a impedir que este tipo de resultado se concretizasse. Tratava-se de um Estado fundado sobre o sectarismo institucionalizado, a discriminação e a exclusão dirigidas contra um sector da comunidade, principalmente as pessoas de origem católica e, certamente, as que se identificavam como cidadãos irlandeses.

E qual foi a importância da nova vitória eleitoral do Sinn Féin em 2023?

Em 2023 tivemos eleições autárquicas no Norte da Irlanda. Nessa ocasião, mais uma vez, o Sinn Féin emergiu como o maior partido, com a maior quota de votos e o maior número de assentos e governos locais. Foi uma reafirmação do resultado das eleições de maio de 2022. Portanto, categoricamente, o Sinn Féin estabeleceu-se como o maior partido do Norte da Irlanda.

Ainda assim, o Partido Unionista Democrático (DUP nas siglas em inglês) manteve o bloqueio. Mas a pressão para que o resultado democrático das duas eleições fosse respeitado, para que as instituições fossem restauradas, e para que um governo de partilha de poderes fosse estabelecido foi aumentando.

Felizmente, como resultado de uma convergência de muitos fatores diferentes, eles foram forçados a reavaliar o seu bloqueio às instituições.

E quais foram esses fatores?

Havia um claro imperativo democrático para que respeitassem o resultado das eleições. Os nossos serviços públicos estão cronicamente subfinanciados, porque dependemos de um envelope de financiamento fornecido pelo Estado britânico.

Há muitos anos que se regista uma enorme agitação laboral no setor público do Norte da Irlanda. Os nossos professores, os nossos médicos, os nossos enfermeiros, a nossa polícia, os bombeiros, os trabalhadores dos serviços de emergência, todos eles são muito mal pagos. Em meados de janeiro, houve uma greve geral em todo o Norte, envolvendo todos os trabalhadores do setor público que exigiam que lhes fosse pago um salário decente e que as instituições fossem restauradas para garantir que isso acontecesse.

E, como consequência desse contexto, o DUP foi forçado a mudar a sua posição e a restaurar as instituições. Como resultado direto disso, assistimos à nomeação de Michelle O'Neill como primeira-ministra do executivo do Norte.

Tudo isto se insere no contexto do desenvolvimento do processo de paz, da implementação bem sucedida da estratégia nacional do Sinn Féin, em que estabelecemos o objetivo de aumentar o apoio eleitoral e popular a norte e a sul.

A par da primeira-ministra, o Sinn Féin também conseguiu assegurar ministérios importantes?

Sim, temos agora o primeiro-ministro do executivo e, a par disso, temos a responsabilidade do Ministério da Economia, do Ministério das Finanças e das Infraestruturas.

O caminho trilhado até aqui pelo Sinn Féin é irreversível?

Creio que as mudanças que estão na base do que aconteceu são irreversíveis. Assistimos a mudanças políticas irreversíveis no Norte e em toda a ilha. Acresce que estamos a assistir a mudanças demográficas expressivas. A composição da sociedade no Norte da Irlanda está a mudar. Há menos pessoas unionistas do que havia historicamente. E há mais pessoas que se identificam como cidadãos irlandeses. Por isso, talvez ainda não tenhamos chegado ao ponto de viragem, mas estamos a aproximar-nos. Disso, não há dúvida.

Neste contexto, um referendo sobre a reunificação já se avista no horizonte?

Absolutamente. A reunificação da Irlanda está no horizonte. Estamos a um passo de realizar o referendo de unidade, previsto nos termos do Acordo de Sexta-Feira Santa, permitindo o exercício do direito à autodeterminação, que foi negado ao povo irlandês durante mais de 100 anos.

Todos estes fatores combinados, as mudanças eleitorais, as mudanças políticas, as mudanças demográficas, várias pesquisas e inquéritos que foram realizados, todos eles a indicar que houve uma mudança profunda no Norte da Irlanda, representam a base para a convocação do referendo.

O poder para o efeito cabe ao Governo britânico. É ele que tem a responsabilidade de indicar uma data para o referendo.

A nossa posição é que a realização de um referendo está no horizonte. E, por isso, temos de nos preparar agora para esse horizonte, para termos um debate e uma discussão com uma sociedade irlandesa estruturada, informada, educada e responsável sobre as razões pelas quais precisamos de um referendo sobre a unidade, sobre a natureza desse referendo.

Como em qualquer referendo, haverá uma campanha. Haverá argumentos a favor e contra a questão a ser colocada. Precisamos de preparar o contexto para que, quando a questão for colocada em cima da mesa, os cidadãos irlandeses estejam plenamente informados e conscientes no que respeita ao que essa mudança representaria.

Temos, portanto, de dialogar com a sociedade irlandesa do Norte e do Sul e iniciar um processo de persuasão democrática em torno dos méritos e dos benefícios da reunificação irlandesa.

O Sinn Féin também tem vindo a reforçar o seu peso no Sul da Irlanda?

Durante 100 anos após a divisão, e paralelamente ao Estado sectário que se desenvolveu no Norte da Irlanda, desenvolveu-se uma teocracia no Sul, dominada por uma elite da classe média nacionalista, que virou as costas à revolução desse período. Nesse contexto surgiram dois grandes partidos conservadores que, durante 100 anos, se foram alternando no poder.

E isso manteve um status quo na sociedade irlandesa do Sul, que tem sido o catalisador de todas as desigualdades, dos problemas sociais existentes. Agora, mediante a situação de crise do custo de vida, com muitas pressões económicas e aumento da inflação, pressões sobre os trabalhadores e as famílias durante anos, o eleitorado do sul da Irlanda tem procurado algo diferente do duopólio dos dois grandes partidos. E essa oportunidade surgiu em fevereiro de 2020, quando o Sinn Féin esmagou este duopólio, emergindo como o maior partido do país. Mas, infelizmente, a consequência disso foi o facto de o establishment conservador irlandês ter forçado a união de dois partidos que, historicamente, nunca se tinham unido antes, a fim de manter o Sinn Féin afastado do poder.

No Sul, crescemos e continuamos a crescer porque apresentamos uma agenda de mudança, e políticas e estratégias sobre como essa mudança pode ser efetivamente implementada.

Portanto, atualmente, o Sinn Féin é o maior partido da ilha. Paralelamente ao grande êxito dos últimos dois anos, e ao significado muito simbólico da nomeação do primeiro-ministro no Norte, continuámos a crescer no sul da ilha, onde somos o principal partido da oposição. O Sinn Féin tem os maiores níveis de apoio popular. E isso representa uma nova dinâmica, com a qual espero que possamos contar quando enfrentarmos as eleições europeias, as eleições autárquicas e as eleições para a Irlanda do Sul.