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Chelsea Manning: A campanha dos militares dos EUA contra a liberdade de imprensa

Neste artigo escrito a partir da prisão onde cumpre uma pena de 35 anos por divulgar informações confidenciais dos EUA, Chelsea Manning defende que a disparidade entre o que se passa nos países sob intervenção militar dos EUA e aquilo que é relatado pela imprensa está a minar a democracia. E responsabiliza os militares norte-americanos pelos ataques e limitações à liberdade de imprensa.
Chelsea Manning (anteriormente conhecida como Bradley Manning) foi analista de informações no Iraque e entregou à Wikileaks ficheiros retirados da rede interna, como os telegramas das embaixadas norte-americanas.

A cortina de fumo da guerra: A campanha dos militares dos EUA contra a liberdade de imprensa

Quando decidi divulgar informação classificada em 2010, fi-lo por amor ao meu país e pelo sentido do dever para com os outros. Cumpro agora uma pena de 35 anos de prisão por essa divulgação não-autorizada. Compreendo que os meus atos violaram a lei.

No entanto, as preocupações que me motivaram ainda não foram resolvidas. Enquanto o Iraque entra em erupção com a guerra civil e os Estados Unidos da América voltam a ponderar uma intervenção, esse assunto não-resolvido deveria dar nova urgência à questão de como os militares dos EUA controlaram a cobertura jornalística do seu longo envolvimento, ali como no Afeganistão. Creio que os atuais limites à liberdade de imprensa e o secretismo excessivo do governo tornam impossível aos norte-americanos compreender totalmente o que se está a passar nas guerras que estamos a financiar.

Se estiveram atentos às notícias durante as eleições iraquianas de Março de 2010, lembrar-se-ão que a imprensa Americana estava inundada de estórias que declaravam o sucesso das eleições, acompanhadas de outros episódios otimistas e fotografias de mulheres Iraquianas exibindo com orgulho os seus dedos manchados de tinta. O subtexto era que as operações militares dos Estados Unidos tinham conseguido criar um Iraque estável e democrático.

Aqueles que ali estavam destacados sabiam bem que a realidade era mais complicada.

Enquanto analistas de informações, tal como os oficiais a quem reportávamos, tínhamos acesso a uma visão abrangente da guerra que muito poucos teriam. Como poderiam os decisores de topo dizer que o povo norte-americano, ou mesmo o Congresso, apoiavam o conflito, se lhes faltava saber metade da história?

Os relatórios militares e diplomáticos que chegavam à minha secretária contavam com pormenores a repressão contra os dissidentes políticos por parte do ministro iraquiano do Interior e da polícia federal, agindo em nome do Primeiro Ministro Nuri Kamal al-Maliki. Os presos eram torturados com frequência, ou mesmo assassinados.

Antes disso, recebi ordens para investigar 15 indivíduos que tinham sido detidos pela polícia federal sob suspeita de imprimirem “literatura anti-Iraquiana”. Percebi que esses indivíduos não tinham absolutamente nenhuma ligação ao terrorismo; estavam a publicar uma crítica erudita da administração de al-Maliki. Encaminhei esta descoberta para o oficial no comando da zona leste de Bagdade. Ele respondeu que não precisava desta informação; em vez disso, eu deveria ajudar a polícia federal a localizar mais tipografias “anti-Iraquianas”.

Fiquei chocada pela cumplicidade dos nossos militares na corrupção dessa eleição. Ainda assim, estes pormenores profundamente inquietantes escaparam ao radar dos media norte-americanos.

Não foi a primeira vez (nem seria a última) que senti a necessidade de pôr em causa a forma como estávamos a conduzir a nossa missão no Iraque. Enquanto analistas de informações, tal como os oficiais a quem reportávamos, tínhamos acesso a uma visão abrangente da guerra que muito poucos teriam. Como poderiam os decisores de topo dizer que o povo norte-americano, ou mesmo o Congresso, apoiavam o conflito, se lhes faltava saber metade da história?

Entre os muitos relatórios diários que recebi por email quando trabalhava no Iraque, em 2009 e 2010, estava uma informação interna das relações públicas que listava os artigos publicados recentemente sobre a missão Americana no Iraque. Uma das minhas tarefas regulares era fornecer para o resumo das relações públicas, que era lido pelo comando do leste de Bagdade, uma descrição de cada assunto resumida a uma frase, complementando a nossa análise com informações recolhidas localmente.

Quanto mais comparava as notícias que saíam nos Estados Unidos com os relatórios diplomáticos e militares a que tinha acesso enquanto analista, mais me apercebia da sua disparidade. Em contraste com as informações sólidas e matizadas que fazíamos no terreno, as notícias disponíveis para o público estavam inundadas de especulações nebulosas e simplificações.

Em todo o Iraque, que tinha 31 milhões de pessoas e 117 mil tropas dos Estados Unidos, não havia mais que uma dúzia de jornalistas norte-americanos a cobrir operações militares.

Uma pista para entender esta disparidade está naqueles relatórios das relações públicas. Quase ao cimo de cada um aparece o número de jornalistas incorporados que estão colocados em unidades militares Americanas em zona de combate. Ao longo da minha missão, nunca vi esse número subir além dos 12. Por outras palavras, em todo o Iraque, que tinha 31 milhões de pessoas e 117 mil tropas dos Estados Unidos, não havia mais que uma dúzia de jornalistas norte-americanos a cobrir operações militares.

O processo de limitar o acesso à imprensa a um conflito começa quando o repórter se candidata ao estatuto de incorporado. Todos os repórteres são cuidadosamente examinados pelas relações públicas dos militares. Este sistema está longe de ser imparcial. Sem surpresa, os repórteres que já tinham relações com os militares têm mais hipóteses de ganhar o acesso.

Menos conhecido é o facto de também terem preferência aqueles jornalistas que as empresas contratadas consideram mais provável produzirem cobertura “favorável”, tendo em conta o que escreveram no passado. Este rating de “favorabilidade” em outsourcing é usado para excluir aqueles que são vistos como tendo maior probabilidade de poderem fazer uma cobertura crítica.

Os repórteres que conseguem obter o estatuto de incorporado no Iraque tiveram depois de assinar um acordo de “regras do jogo” para os media. As relações públicas do Exército diziam que isto era para proteger a segurança operacional, mas também lhes permitiu cancelar a incorporação de um repórter sem direito a recurso.

O programa de repórteres incorporados, que continua no Afeganistão e onde quer que os Estados Unidos mandam tropas, foi profundamente moldado pela experiência militar de como a cobertura mediática fez mudar a opinião pública durante a Guerra do Vietname.

Houve muitos casos de repórteres com o seu acesso cancelado após reportagens controversas. Em 2010, o falecido repórter da Rolling Stone, Michael Hastings, viu retirado o seu acesso depois de ter escrito sobre as críticas à administração Obama, feitas pelo General Stanley A. McChrystal e a sua equipa no Afeganistão. Um porta-voz do Pentágono disse então que “As incorporações são um privilégio, não um direito”.

Se o estatuto de incorporação de um repórter é revogado, ela ou ele vai parar à lista negra. Este programa de limitar o acesso da imprensa foi desafiado em tribunal em 2013 pelo repórter freelance Wayne Anderson, que argumentava ter cumprido a sua parte do acordo mas fora posto de fora após publicar artigos desfavoráveis sobre o conflito no Afeganistão. A decisão deste caso foi ao encontro da posição dos militares, ao defender que não existe um direito constitucionalmente protegido para ser jornalista incorporado.

O programa de repórteres incorporados, que continua no Afeganistão e onde quer que os Estados Unidos mandam tropas, foi profundamente moldado pela experiência militar de como a cobertura mediática fez mudar a opinião pública durante a Guerra do Vietname. Os guardiões das relações públicas têm demasiado poder: naturalmente, os repórteres temem ver o seu acesso cancelado, por isso tendem a evitar notícias controversas que possam acender luzes vermelhas.

O programa existente obriga os jornalistas para competir entre si pelo “acesso especial” a assuntos vitais da política externa e interna. Demasiadas vezes, isto cria notícias elogiosas para os decisores de topo. Um dos resultados é que o acesso do público norte-americano aos factos é esvaziado, o que não lhe deixa nenhuma forma de avaliar a conduta dos responsáveis norte-americanos.

Os jornalistas têm um papel importante a desempenhar no apelo a reformas no sistema de incorporações. A favorabilidade de uma notícia anteriormente escrita por um jornalista não pode ser um fator. A transparência, garantida por um órgão fora do controlo dos responsáveis das relações públicas, deve regular o processo de credenciação. Um painel independente, composto por membros do staff militar, veteranos, civis do Pentágono e jornalistas pode equilibrar a necessidade de informação por parte do público com a necessidade de segurança operacional por parte dos militares.

Os repórteres devem ter acesso à informação a tempo. Os militares podiam fazer bem mais para permitir a rápida desclassificação de informações que não põem em risco as missões militares. Por exemplo, os Relatórios de Atividades Importantes dos militares permitem uma visão rápida de acontecimentos como ataques e baixas. Muitas vezes classificados por defeito, eles podiam ajudar os jornalistas a relatar os factos com rigor.

As sondagens indicam que a confiança dos norte-americanos nos seus representantes eleitos atingiu mínimos históricos. Melhorar o acesso dos media a este aspeto crucial da nossa vida nacional - onde a América empenhou os homens e mulheres das suas forças armadas - seria um passo em frente poderoso para restabelecer a confiança entre eleitores e representantes.

Chelsea Manning,
Fort Leavenwoth, 14 junho 2014


Artigo publicado no New York Times, tradução de Luís Branco.

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