“Capital alemão necessita de uma periferia laboral na Europa”

27 de julho 2015 - 0:40

Ramón Grosfogue, sociólogo da Universidade de Berkeley, afirma que o capital financeiro alemão está a empobrecer o sul da Europa através das políticas de austeridade para obter mão-de-obra barata e poder competir com a China. Entrevista publicada em Publico.es

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Sob a liderança da Alemanha, estamos a viver um confronto entre o norte o sul da Europa?

Sim, isso ficou claro nos últimos dias. Mas, esta divisão começou no século XVII, quando o sul da Europa era visto como um lugar inferior após a Guerra dos Trinta Anos, quando Amesterdão tira Espanha e a Península Ibérica do centro do sistema-mundo criado a partir da expansão colonial de 1492.

O sul vive uma espécie de alienação mental: por um lado, estão subordinados aos poderes do norte, e por outro exerce com o norte uma poderosa relação com outros lugares do planeta. Vêem-se a eles mesmos como parte do norte, ainda que com muitas contradições. Inclusive após vinte anos de ilusão da União Europeia, o norte da Europa não olha para o sul como um igual.

No norte utilizam termos como PIGS e dizem que a causa da crise são os países do sul, porque são vadios, preguiçosos e corruptos. Como se no norte não existisse corrupção, como se a corrupção fosse uma característica do sul europeu. Não reconhecem que a causa da crise é a pilhagem do capital financeiro internacional. Mas não é nada de novo. É o mesmo discurso que o ocidente utilizou para explicar a pobreza em África, América Latina e Ásia.

É um discurso totalmente racista que tem estado sempre aí desde há quatrocentos anos, e que volta a emergir agora com força a partir da crise. Ou, o sul da Europa se descoloniza e assume-se como sul de uma vez por todas, propondo outro projeto geopolítico e económico para além do capitalismo imperialista ocidental, ou vai continuar ajoelhado dentro da Europa.

Por que é que dentro da mesma EU temos três europas com um nível de vida muito diferente? Refiro-me à Europa do norte, Europa do sul e Europa de Leste.

O capital financeiro alemão no século XXI precisa de periferia. A Alemanha sempre foi um império que perdeu a batalha das periferias em África, Ásia e América Latina. Por isso, olha para o leste da Europa, que é a sua periferia histórica, e para o sul da Europa como a sua nova periferia no século XXI. Sem periferias não têm como competir com a ascensão da China e com os Estados Unidos. E daí conclui-se? O sul da Europa, nos últimos vinte anos, “ficou muito caro” nos seus custos de produção e mão-de-obra para a concorrência do capital financeiro alemão com a China. Daí a política de austeridade do capital financeiro alemão através da troika para empobrecer o sul da Europa e assim produzir mão-de-obra barata. Nas atuais negociações, a Grécia cede e mesmo assim os alemães impõe mais restrições, por que o que se quer no fundo é que acabem de sair.

No último referendo na Grécia, as opções de voto eram Não-Sim, mas dentro da UE.

O que me parece incrível é que os líderes gregos tenham ido para uma negociação com a troika sem saber que a agenda alemã era expulsá-los do euro e, pior ainda, sem um plano de saída do euro como plano B perante o falhanço de ficar dentro da zona euro em condições dignas. Pelo menos, foi isto que Varoufakis reconheceu publicamente. O que aconteceu demonstra que se vais lutar contra a troika, tens que ter um plano de saída do euro e de inserir o teu país em outros blocos económicos e geopolíticos no mundo. Não é possível, após a imposição alemã sobre a Grécia e a claudicação de Tsipras, pensar numa política de esquerda que não tenha na agenda um plano para sair do euro. Dentro do euro e da União Europeia, não é possível uma política fora das lógicas austericidas da troika. Esse é a mensagem que impuseram e que não pensam modificar. Dado a ascensão da direita e da extrema-direita no norte, uma política de esquerda antitroika e antineoliberal tem que assumir a saída do euro; e isto somente se consegue se se conseguir uma mudança anticolonialista, assumindo-se como parte do sul e deixar a ilusão europeia de uma vez por todas.

Na Europa do leste levam com décadas de austeridade. Os trabalhadores ganham 300 euros por mês. Consideram-nos menos europeus?

Já conquistaram a Europa do leste. Agora toca ao sul, porquê? Porque perante o desafio que a China representa, o capital financeiro alemão precisa de uma periferia laboral na Europa, reproduzindo as condições laborais da China na Europa.

Falaste do racismo do norte contra o sul. Na Europa aumentam os partidos de extrema-direita. Em Espanha não há uma Marine Le Pen, achas que há menos racismo?

Isso é uma falácia. A extrema-direita espanhola está no Partido Popular. No PP estão todos os discursos de Marine Le Pen, mas camuflados, como se fosse a direita clássica. E se há dúvidas, basta olhar para as políticas aplicadas nos últimos quatro anos. Eles são a extrema-direita na prática; nas suas políticas tens racismo, austeridade, lógicas neoliberais selvagens, tens tudo. O PP camufla a extrema-direita e, neste sentido, é pior que os partidos da extrema-direita, cujo discurso é direto.

Então, como é que se manifesta o racismo na vida quotidiana de cada um?

O racismo é sempre institucional. Nas sociedades atuais, quando se define o racismo, pensa-se que é um problema de preconceitos e estereótipos. A ideia de que o racismo se limita a um grupo de pessoas com preconceitos é muito problemática, porque reduz tudo a uns extremistas minoritários na sociedade. Deste modo, o que há a fazer é educar estes extremistas para que mudem, mas o resto da sociedade está bem. E isso não é assim.

O racismo é uma prática institucional. Isto é, para que exista racismo não basta apenas que exista gente com preconceitos, têm que existir instituições que levem à prática destes preconceitos. Peguemos por exemplo na polícia: se fazem um exame de tolerância, talvez muitos polícias passem neste exame. Mas quando se aborda o funcionamento da polícia como instituição, deteta-se que, em função do bairro, utiliza diferentes métodos de atuação.

O problema não é o extremista com preconceitos mas as próprias instituições normativas das sociedades ocidentalizadas que estão construídas sobre práticas racistas para imigrantes ou minorias. Estas práticas encontra-las no mercado de trabalho, na ausência de direitos de cidadania, na falta de acesso a recursos, etc. O racismo é um cancro terminal da civilização ocidental, porque está a organizada a partir de dentro e de forma transversal em todas as formas de dominação da existência humana.

Quais são os marcadores do racismo?

O racismo tem muitos marcadores. A cor da pele, a identidade religiosa, étnica, nacional... A cor da pele é o mais habitual devido à história do sequestro em massa de africanos por parte dos impérios europeus e o seu deslocamento forçado para as Américas para serem escravizados. Mas o racismo não se relaciona só com a cor. Os grupos que padecem de racismo institucional estão sujeitos em qualquer momento à violência ou a políticas de despojo de recursos. A opressão de classe vive-se também de forma diferente se se pertence a um grupo afetado pelo racismo ou não. Numa companhia aérea dos Estados Unidos ou de França, um operário ganha uns 150 euros à hora, trabalha oito horas ao dia e, se há um conflito com a companhia, pode ir para um tribunal ou organizar uma marcha na rua, e sabe que nessa noite regressará a casa vivo para dormir. Por seu lado, as operárias de um grupo que sofre opressão racial, e digo operárias por que 90% do proletariado mundial são mulheres do Terceiro Mundo, ganham um ou dois dólares por dia. E não trabalham oito, mas catorze ou dezasseis horas por dia. Estas mulheres, se tentam fazer uma greve ou levar a empresa a tribunal colocam a sua vida em risco, por que nas “zonas do não-ser” o sistema gere os conflitos com violência e extorsão. Por exemplo, as costureiras nos Estados Unidos ou na Ásia. Mas isso não se passa só no México, em Marrocos ou no chamado Terceiro Mundo. Isto passa-se dentro do mundo ocidental, nas suas cidades globais, onde há zonas de manufatura com mão-de-obra migrante onde se tenta reproduzir os custos da China. 

Entrevista publicada em Publico.es