Agronegócio vs. direito à alimentação

30 de novembro 2019 - 14:16

Se é certo que a produtividade agrícola aumentou significativamente e que são produzidos alimentos suficientes para acabar com a fome no mundo, a pobreza continua a ser o principal obstáculo a este problema." Artigo de Rita Calvário para a revista Esquerda.

porRita Calvário

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Por todo o mundo crescem as preocupações com uma alimentação adequada e com modelos agrícolas e de distribuição alimentar que reduzam os impactos ambientais e mantenham um mundo rural vivo. Subjacente está o amplo reconhecimento de que a industrialização da agricultura resultante da Revolução Verde, bem como a concentração da distribuição na mão de poucas empresas transnacionais devido à liberalização e financiarização dos mercados globais, falharam em responder à fome no mundo, ao mesmo tempo que resultaram na devastação dos solos, das reservas de água e da biodiversidade, bem como na destruição de milhões de pequenas produções camponesas e familiares, acentuando o abandono dos territórios, a pobreza rural e as desigualdades sociais.

Se é certo que a produtividade agrícola aumentou significativamente e que são produzidos alimentos suficientes para acabar com a fome no mundo, a pobreza continua a ser o principal obstáculo a este problema. Aumentar a produção não é sinónimo de segurança alimentar. Mas a pobreza não é apenas uma questão de falta de acesso ou ausência de políticas distributivas. O próprio modelo agroalimentar industrial, globalizado e neoliberal gera pobreza e exclusões.

Os erros da industrialização e liberalização da agricultura

Um modelo assente na monocultura, nos agrotóxicos e na irrigação intensiva destrói recursos (solo, água, biodiversidade, etc.) e capacidade produtiva, tanto atual como futura; substitui produção alimentar por culturas para exportação, alimentação animal ou biocombustíveis, criando vulnerabilidades; reduz a diversidade agrícola (e a sua base genética) e privilegia variedades muito produtivas mas deficitárias em nutrientes, empobrecendo as dietas alimentares e comprometendo a capacidade de adaptação às alterações climáticas.

Este é também um modelo feito à medida de quem tem capital, precarizando ou tornando redundante quem vive do seu trabalho na terra: quem produz fica completamente dependente de inputs externos, como seja maquinaria, fertilizantes, pesticidas,e até sementes (as sementes híbridas, i.e. melhoradas, são estéreis). Por sua vez, estes inputs são controlados por meia dúzia de empresas transnacionais, as mesmas que financiaram o pacote tecnológico da Revolução Verde e a sua difusão a todo o globo, ajudadas pela mobilização massiva dos recursos do Estado. Esta dependência é acompanhada pelo crescente recurso ao crédito agrícola, ou seja, ao endividamento financeiro. As palavra de ordem são concentração, especialização e intensificação, não acessíveis à maioria da pequena produção. Neste processo, perde-se também muito conhecimento local e “tradicional” acumulado durante gerações de experimentação e erro em sistemas complexos. Há quem aponte ainda que, no contexto da Guerra Fria, a Revolução Verde serviu para temperar as lutas sociais pela reforma agrária no sul global.

A par desta transformação da agricultura, o agronegócio ganhou força no setor da distribuição, crescentemente dominado por grandes cadeias que controlam os preços dos alimentos e obtêm margens comerciais abusivas, em prejuízo tanto de quem produz como de quem consome; exigem volumes de produção e produtos standard não compagináveis com sistemas agrícolas diversos e de pequena dimensão; e definem o que consumimos (e o que é cultivado). Nalguns casos, como é expressivo nos EUA, são responsáveis pela criação de “desertos alimentares”, em que populações de baixos rendimentos, em geral comunidades negras e latinas, não têm acesso a pontos de venda de alimentos, em especial de produtos frescos. Por outro lado, a disseminação e os preços baixos da “junk-food” tornam estas comunidades mais vulneráveis à obesidade e a outros problemas de saúde (parcialmente) relacionados com a alimentação.

Com a industrialização da agricultura e liberalização dos mercados agrícolas, foram milhões de pequenas produções que desapareceram em todo o mundo, proletarizando-se estas pessoas. As que se mantiveram fizeram-no à conta da pluriatividade, ou seja, do trabalho fora das explorações. Este é o caso da maioria da produção em Portugal, por exemplo. Outras diferenciaram-se, capitalizaram e intensificaram as suas produções, mantendo-se enquanto as condições ambientais (e.g. solo, água), os preços dos inputs, os apoios públicos ou o crédito subsidiado o permitirem. E enquanto consigam escoar a produção sem ser esmagados pela distribuição. Nalguns casos, a organização de quem produz, por exemplo através de cooperativas, permitiu a sua inserção nos mercados globais, mas não sem as dificuldades e pressões trazidas pela competitividade. Outras ainda mantiveram sistemas agrícolas mais tradicionais, diversificados, com preservação de variedades locais (e reprodução de sementes), e menos dependentes de inputs externos e do crédito, essencialmente viradas para a subsistência e/ou o pequeno abastecimento local.

A transformação profunda do sistema agro-alimentar está também associada a fortes processos de construção ideológica e simbólica, designadamente denegrindo a agricultura camponesa, familiar e de pequena dimensão como “atrasada”, os e as suas protagonistas como “retrógradas” e o meio rural como “atávico”. Entre outros aspetos relacionados, está a dificuldade em criar identidades partilhadas que facilitem lutas sociais e ainda a criação de alianças entre campo e cidade, sem necessariamente se cair em “romanticismos” populistas agrários.

O erro repete-se: uma nova revolução verde?

Desde 2006, temos assistindo a repetidas crises alimentares globais devido à inflação nos alimentos, com especial destaque para os anos de 2007-2008 e 2010-2012. Por detrás destes picos, tudo indica estar uma tendência de aumento do preço dos alimentos no longo prazo.

O aumento do preço dos inputs externos, ligados a uma economia do petróleo, as alterações climáticas, as crescentes vulnerabilidades à produção e a especulação com os alimentos nos mercados financeiros globais são algumas das explicações apontadas para termos um sistema agroalimentar cada vez mais frágil.

Uma alta do preço dos alimentos afeta as populações mais pobres e vulneráveis. Nos países do sul global, onde os gastos com a alimentação ocupam uma fatia grande dos orçamentos familiares, produziram-se várias “revoltas alimentares”. Nos países mais ricos, também a insegurança alimentar tem aumentado nos últimos anos, em especial nos anos da crise económica e financeira.

Para responder a estas pressões crescentes, vários países e o grande capital começaram uma corrida à aquisição massiva de terras, em especial nos países mais pobres, de forma a garantir o controlo sobre os mercados agrícolas e os stocks de alimentos. Mais ainda, instituições como o Banco Mundial e outras propõem uma Nova Revolução Verde, apresentando argumentos da necessidade de aumentar a produção e produtividade, mas agora minimizando os impactos ambientais. Ou seja, trata-se de esverdear o anterior modelo, mantendo os mesmos pressupostos e condições geradoras de desigualdades. Este “novo” modelo assenta na biotecnologia, como seja a manipulação genética, e na computadorização, entre outras tecnologias “de precisão”, apostando na liderança do setor privado e na competitividade nos mercados globais.

Alternativas e resistências locais e globais

As contradições ambientais, sociais e económicas geradas pela agricultura industrial e as políticas neoliberais no setor agroalimentar, nas suas velhas e novas roupagens, levaram à emergência de movimentos sociais agrários e redes agroalimentares alternativas.

Com origem nas lutas agrárias do sul global contra os programas de ajustamento estrutural e os acordos de livre comércio, surge em 1993 a organização transnacional agrária La Vía Campesina. Considerado o maior movimento social global dos dias de hoje, esta organização representa cerca de 200 milhões de agricultores e agricultoras em todo o mundo, reunindo 164 organizações de 73 países nos diversos continentes. Além dos e das agricultoras, também engloba os e as sem-terra, o sector da pesca e os e as trabalhadoras agrárias e migrantes. Em 1996 lança o conceito de soberania alimentar como alternativa ao conceito de segurança alimentar, muito em voga nas instituições internacionais e que está na base de “soluções” como a Nova Revolução Verde.

A soberania alimentar alerta que as questões da falta de acesso à alimentação têm de ser ligadas à destruição da pequena agricultura, dos meios de vida em meio rural e do ambiente causada por políticas públicas no sector e por uma economia política neoliberal que cria desigualdades profundas. Se inicialmente a soberania alimentar punha o foco no direito das nações e na sua autosuficiência alimentar, o conceito avançou para englobar os “direitos das pessoas” a definir os seus sistemas agroalimentares, tendo em conta as aspirações, necessidades e meios de vida de quem produz, distribui e consome alimentos. O que se propõe é a democratização dos sistemas agroalimentares, tendo o objetivo de construir uma sociedade livre de opressões e desigualdades de classe, género, geracionais e entre povos. A alimentação é entendida como um direito humano, sendo concretizado através da mudança de políticas e da construção de um modelo assente na agroecologia, na pequena produção e em sistemas alimentares locais. Para isso, a organização e mobilização coletiva é considerada necessária, designadamente através da construção de alianças entre organizações, movimentos sociais e os setores da população mais empobrecidos e marginalizados pelas políticas neoliberais (e o capitalismo de forma geral).

A par dos movimentos agrários, mais fortes e radicais em países do sul global, como o Movimento dos Sem Terra no Brasil, têm surgido também várias alternativas agroalimentares com origem nas cidades, em especial nos países mais afluentes do norte global, em que o peso da agricultura nas sociedades é menor. Entre estas alternativas contam-se as redes/movimentos pela agricultura biológica, o comércio justo, os sistemas alimentares locais, as bacias alimentares, os circuitos curtos, a agricultura suportada pela comunidade, a agricultura urbana, o slow food, o km0, os comités locais de política alimentar, a segurança alimentar suportada pela comunidade, a justiça alimentar (redes focadas no acesso justo a alimentos de qualidade e à participação das minorias e grupos vulneráveis nas decisões sobre a alimentação), entre muitas outras. As motivações destas iniciativas variam e vão, entre outras, desde a proteção ambiental, ao “comer bem”, ao apoiar a pequena produção familiar e o meio rural e o garantir acesso à alimentação (de qualidade) às camadas mais pobres e/ou marginalizadas da população. Algumas são mais críticas e oposicionais, procurando desafiar as estruturas de poder na transformação radical do sistema agroalimentar, colocando a tónica no combate às injustiças e desigualdades estruturais; outras seguem uma via de criar alternativas práticas, essencialmente de mercado e privilegiando o “voto com o garfo” e/ou localismos defensivos, que possam incrementalmente mudar o sistema agroalimentar vigente.

Existe nestas experiências muita diversidade específica também aos contextos (locais, nacionais e internacionais) em que se desenvolvem. Ou seja, sem atender a esses contextos dificilmente elas podem ser compreendidas. Muitas são progressistas e conseguiram ir colocando barreiras ao pior da mercantilização da alimentação; outras assumem uma ambição transformadora dos sistemas agroalimentares (e da sociedade em geral) e são mais radicais, assumindo uma dimensão de organização e ação coletiva; e outras são mais acomodativas às lógicas neoliberais de criação de alternativas via mercado e assente no primado da escolha individual. Nem sempre esta distinção é fácil e transmutações também ocorrem.

O certo é que o tema da alimentação reflete e é foco de tensões e conflitos sociais. Todas nós comemos e diariamente esse ato manifesta e resulta de relações de desigualdade – porque o sistema agroalimentar está alicerçado em desigualdades desde a produção até que o alimento chega às nossas mesas. A alimentação envolve questões de sobrevivência, de saúde, de convivialidade, de relações sociais, de género, de racismo, de economia, de território, de património, entre tantas outras. Liga-se de forma estreita com as problemáticas da crise energética e da crise climática. Este tema é incontornável e mobiliza muita gente. Para que lado o sistema agroalimentar vai caminhar, se para uma reorganização neoliberal, se para uma transformação progressista ou mais radical, depende muito de como se desenvolvem os movimentos em torno da alimentação e que alianças entre si e e entre estes e outros movimentos se irão estabelecer.

Algumas experiências em Portugal

Várias autarquias têm apostado na confeção própria nas cantinas escolares (como em Lisboa) e também no abastecimento com produtos de origem local, sazonal e biológica, privilegiando a agricultura familiar (como em Torres Vedras, Fundão ou Évora).

Os circuitos curtos estão em crescimento e em muitas modalidades disponíveis, desde os cabazes aos mais tradicionais mercados locais. Há iniciativas puramente comerciais e outras que têm objetivos sociais e/ou ligados à economia solidária. O Prove é um sistema de cabazes existente em todo o país, envolvendo cerca de 140 pequenos agricultores e 4.000 consumidores, organizado com o apoio de Associações de Desenvolvimento Local. Os seus objetivos são apoiar o escoamento do produto agrícolas a preços justos para o/a produtor/a da agricultura familiar. As AMAP–Associação pela Manutenção da Agricultura de Proximidade são também um sistema de cabazes, a funcionar sobretudo no Norte do país, mas que aposta numa relação ativa e solidária entre o consumidor e o produtor com base nos princípios da agroecologia, da proximidade e da alimentação como bem comum. Recentemente, as AMAP constituiram-se em Rede Nacional para disseminar o conceito, expandir a sua atividade e influenciar as políticas públicas.

Mértola está a desenvolver uma estratégia municipal com vista à implementação progressiva de um sistema agroalimentar local de base bioecológica e participativa. Num território de muito baixa densidade, envelhecido, com graves problemas de água, falta de solo fértil e muito afetado pelas alterações climáticas, pretende-se garantir o abastecimento à restauração coletiva (escolas, IPSS), ao comércio (restaurantes, mercearias, etc.) e a toda a população com produtos locais, sazonais e de qualidade, assente na criação de hortas locais, da experimentação de novas técnicas agrícolas (agricultura sintrópica) e culturas adaptadas, recuperação de variedades tradicionais e saberes agrícolas, alimentares e culinários (com envolvimento da população sénior), educação alimentar das crianças e jovens, entre muitas outras atividades.

A associação cívica, sem fins lucrativos, Colher para Semear-Rede Portuguesa para as Variedades Tradicionais foi formada em 2006 com o objetivo de preservar as sementes das variedades tradicinais, procedendo à sua inventariação, recolha, cultivo, distribuição e divulgação. Todos os anos organiza os Encontros da Semente, espaço de partilha, debate e troca de sementes. Com estas atividades pretende recuperar e divulgar o património genético agrícola; promover a independência dos agricultores nas sementeiras; diversificar as dietas alimentares; promover cultivos adaptados às condições ambientais e sua variabilidade; criar condições para uma maior segurança e soberania alimentares, não dependente de híbridos ou transgénicos.

Artigo publicado em fevereiro de 2019 na revista Esquerda

Rita Calvário
Sobre o/a autor(a)

Rita Calvário

Dirigente do Bloco de Esquerda, engenheira agrónoma.