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“É preciso devolver a voz ao Povo para que ele inaugure uma nova madrugada”

Catarina Martins diz que o 25 de Abril rompeu com o fardo cultural do país isolado e condenado ao empobrecimento, e criou o consenso em torno do Estado social. Ao pôr em causa este consenso, a direita fez do revanchismo social a sua imagem de marca e põe em causa a própria liberdade. “Mais do que nunca, é preciso devolver a voz ao Povo português para que ele seja senhor do seu destino e inaugure uma nova madrugada”, conclui a coordenadora do Bloco de Esquerda. Leia na íntegra a intervenção na sessão de comemoração do 25 de Abril.
"Nunca, como hoje, um governo fez do revanchismo social a sua imagem de marca."

Tenho a idade do 25 de abril. Comecei a dar os primeiros passos, literalmente, com aquele abril que nos fez esquecer esse longo mês de março. Em minha casa, como em quase todas, discutia-se política.

Foram tempos de aprendizagem. Muito, quase tudo, só me fui apercebendo mais tarde. Que foram os dias em que aprendemos a força de ter força, em ter orgulho no que é nosso e no que podemos construir como coletivo.Que um país pobre, e fechado sobre si próprio, pode quebrar o atavismo e encontrar-se no seu futuro.

Foi essa crença em Portugal e nos portugueses, a ideia que o destino do país não estava confinado à mediocridade pobre mas remediada, que nos trouxe essa clara madrugada. Dizia Salazar em 1962, resumindo quatro décadas de isolacionismo, que “um povo que tenha a coragem de ser pobre é um povo invencível”. Foi este o fardo cultural quebrado por Abril.

A revolução foi feita pela força de quem tem a certezaque o empobrecimento não é o nosso fado natural, a democracia cresceu na convicção que esse país fechado sobre si próprio “foi um sonho mau que já passou, foi um mau bocado que acabou”.

Os cravos vieram para rebentar com o provincianismo atávico. Devolver a esperança e renascer o orgulho. Substituir a ideologia da pobreza pela coragem de fazer melhor e a esperança de almejar mais além.

A modernidade política e cultural inauguradas com a revolução trouxeram-nos a ambição de ser europeus de pleno direito. A coragem de nos inspirarmos nos melhores exemplos e reclamá-los como nossos. A universalidade nos cuidados de saúde, a proteçãona velhice, a equidade de oportunidades do sistema educativo. Abril foi ser mais alto.

Foi assim que eu, que não vivi a revolução, sou filha dela. Eu, como tantas e tantos “filhos de abril”, estudei em escolas e universidades públicas, dei à luz em hospitais do serviço nacional de saúde e foi a segurança social que me permitiu ter licença de maternidade.

Não vivi a revolução, mas não seria a mesma sem a janela que ela nos abriu. Celebrar Abril é também lembrar o que ele foi para cada um de nós, no que nos transformou e no que nos abriu de possibilidades.

A democracia mobilizou um país. Uniu-o, nas suas diferenças, em torno de dois ou três consensos que perduraram quatro décadas. Portugal não pode viver isolado, e abrimo-nos ao mundo; Portugal não está condenado ao empobrecimento, e construímos um estado social. Temos orgulho nisso.   

O consenso em torno do estado social inscreve-se nas nossas vidas. Está no quotidiano de quantos crescem e cresceram na escola pública. Que tornou possível que tantas e tantas famílias portuguesas quebrassem o ciclo da pobreza e do analfabetismo e que hoje os pais sejam orgulhosos do tão mais que os seus filhos e filhas souberam estudar, puderam aprender.

O estado social está inscrito no SNS a quem nos entregamos nos momentos mais frágeis e mais difíceis. O SNS que nos trouxe para a modernidade de nascer em segurança, de transformar em doença ligeira o que era causa de morte.

Construímos as nossas vidas com base num contrato social que nos chama a participar sempre, para nos apoiar quando precisamos. O estado social que construímos lembra-nos o que somos: solidários. Orgulhosamente solidários.

O estado social tem o peso exato da nossa democracia. É imperfeito, como tudo na vida, e temos a ambição de que seja melhor e mais presente. Mas nunca passou pela cabeça de ninguém voltar atrás, desistir da dignidade, quebrar os consensos fundadores da democracia.

Até agora.

Nunca, como hoje, um governo fez do revanchismo social a sua imagem de marca. Na verdade, o país está hoje sob o efeito de um duplo resgate.

O resgate financeiro, claro. A chantagem da dívida é o argumento para a imposição da austeridade que mata a economia e o país. Quanto mais cortam, mais gente no desemprego, maior a recessão, mais dívida se acumula. Não é um acidente. Nem falta de jeito ou mera incompetência. É um plano deliberado para uma violenta transferência dos rendimentos do trabalho para o capital financeiro.

E o resgate da memória, efetuado por uma direita sedenta por reescrever a história.

A reconfiguração do Estado a um papel mínimo e a uma lógica assistencialista, é-nos apresentado como uma inevitabilidade insofismável. O preconceito ideológico de uma direita radical é travestido de ciência exata.

Mas esta ideologia radical, precisamente por representar uma ruptura com todos os consensos nascidos em abril e fomentados por quatro décadas de democracia, precisa dos seus mitos fundadores.  

Daí o embuste permanentemente encenado por um primeiro-ministro que nos diz que o Estado é gordo, pesado e ineficiente. Que foi o seu peso que nos trouxe a crise.

Vivemos todos acima das nossas possibilidades, dizem-nos, ou como os estereótipos chauvinistas contra o sul podem ser assimilados e reciclados por um Governo da periferia da Europa.

Nesta cruzada contra tudo o que é público, pouco importa a Passos Coelho e Paulo Portas que todos os números desmintam o seu discurso.

Pouco lhes importa que Portugal seja um dos países da Europa aonde se trabalha mais horas por ano.

Que o orçamento da Educação e Saúde, ou mesmo o peso dos salários da função pública, fiquem abaixo da média europeia.

Que Portugal seja um dos países aonde as transferências sociais mais reduzem o risco de pobreza.

Não, não foram os serviços públicos e as prestações sociais que nos conduziram a esta crise, mas isso nada interessa a quem apenas quer saber da legitimação de um programa que sabe avassalador.

A direita no poder em Portugal rasga o contrato social de abril para tentar reconfigurar as maiorias sociais e abrir caminho à transformação do estado social em estado assistencial.

É o sonho da direita: responder às obrigações do povo, não com os direitos e a dignidade próprias da cidadania, mas com a prepotência de dar como esmola o que é devido por direito.

Não nos enganemos. Esta é uma escalada sem fim. Aceitar que a cantina social substitua o subsídio de desemprego está a escassos degraus de aceitar o fim da democracia.

O estado social é o cimento da democracia, a coesão solidária que nos faz cidadãos. Porque a democracia não existe sem liberdade, e não há liberdade sem dignidade e sem igualdade, é a liberdade que esta direita coloca em causa.

É por isso mesmo que o governo se regozija com a redução da política à lenga-lenga da inevitabilidade, com o jugo do memorando da troika, a soberania limitada. É uma direita apostada nadegradação de todos os espaços da democracia;da concertação social ao Parlamento, da comunicação social ao seu próprio governo e até ao Presidente da República. Perguntamo-nos hoje: como pode um governo, que não respeita a constituição que o legitima, ser governo? Ou mesmo, onde estão agora os limites da austeridade?

Um povo condenado a ser pobre emerge novamente como discurso oficioso de quem governa o país. Mas aonde esta direita quer resgatar a memória colectiva de um povo, existirá sempre quem diga presente. Aqui estamos, para disputar a história.

Abril conquistou a liberdade e a democracia com luta, participação, mobilização. A mesma mobilização de que hoje precisamos para recuperar poder sobre as nossas vidas. Dizer não à troika, renegociar a dívida, respeitar todos os nossos compromissos, o primeiro dos quais é o contrato social, a dignidade.

A democracia não é uma lei da física, independente das nossas vontades. A democracia é o nosso exercício quotidiano dessa vontade. Porque, afinal, onde está a fonte do poder?

Sabemos a resposta: está no Povo. Mas a simplicidade desta resposta tem séculos de construção. A deslocação da fonte de poder da Nação para o Povo foi um longo caminho de lutas e conquistas, que conduziu ao traçado dos modernos regimes demoliberais no século XX.

A pergunta a que hoje respondemos é se queremos voltar para trás. Não queremos e não deixamos. Foi só há 39 anos que o nosso país passou a viver plenamente em democracia. E quando Zeca escreveu a Grândola escreveu também a história de um país: o povo é quem mais ordena.

Esse povo real, de gente que luta e trabalha, de gente que não desiste, esse povo que se reencontrou nas ruas e em todas as vezes que a Grândola teve voz. Quando o povo encheu a rua foi essa a reivindicação absoluta que deixou: que nos devolvam o que somos e o que queremos, porque o Povo é quem mais ordena.

E onde há desligamento entre o Povo e os governantes, a democracia congela e ressurgem todas as ameaças populistas: o discurso antipolíticos e antissistema, o desejo de soluções autoritárias milagrosas. Não deixaremos. Hoje, mais do que nunca, é preciso devolver a voz ao Povo português para que ele seja senhor do seu destino e inaugure uma nova madrugada.

Viva o 25 de Abril.

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