Prémios de consolação?! Não, obrigado!

porAna Sartóris

13 de julho 2020 - 21:22
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O combate a esta pandemia faz-se também além do SNS e é levado a cabo por mais pessoas além dos prestadores de cuidados de saúde. Por isso, prémios de consolação desta natureza são profundamente injustos e lançam uma ideia de dicotomia errada.

A Assembleia da República aprovou, este mês, a atribuição de um prémio monetário e uma majoração de dias de férias às/aos profissionais de saúde do SNS que, “de forma continuada e relevante”, durante o Estado de Emergência, prestaram cuidados à pessoa suspeita e/ou confirmada de infecção por covid-19.

Ora, este prémio, que se junta ao da Liga de Campeões, revela, mais uma vez, a falta de valorização devida, não só às/aos profissionais de saúde, na sua globalidade, como a todas as áreas profissionais anexas, de que o sector social é indissociável, sector, aliás, do qual o Estado há muito se retirou, entregando a sua gestão a entidades privadas. O combate a esta pandemia faz-se também além do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e é levado a cabo por mais pessoas além dos prestadores de cuidados de saúde. O pessoal administrativo, o pessoal técnico e o pessoal de limpeza também têm um papel fundamental, sem esquecer as corporações de bombeiros. Por isso, prémios de consolação desta natureza são profundamente injustos e lançam uma ideia de dicotomia errada.

Independentemente da sua aplicação e/ou aplicabilidade – note-se que o documento aprovado é dúbio quanto à identificação dos profissionais abrangidos – a proposta é promotora de desigualdade e injustiça, introduz discórdia inusitada entre profissionais e não produz qualquer alteração estrutural, tão necessária quanto urgente no SNS. Todos os profissionais de saúde estão no combate à covid-19, seja directa ou indirectamente. Todos fizeram, e continuam a fazer, horas a mais e a todos foram retiradas as férias, prestem cuidados em sede hospitalar ou em centros de saúde. A par do seu carácter transitório e único, o prémio em causa é discriminatório.

É um profissional de saúde dos serviços não-covid menos importante que os que desempenham as suas funções em unidades covid? Os profissionais dos internamentos de doenças infecto-contagiosas ou de todas as unidades onde um/a doente está infectado com uma bactéria multirresistente merecem menos? E os profissionais dos Cuidados Continuados, Cuidados Paliativos, Oncologia, Bloco Operatório, etc, melhoram menos a condição de saúde das pessoas, salvam menos vidas, são menos merecedores que outros?

Têm sequer as unidades de saúde as condições e capacidade para cumprir tudo o que é preciso para evitar as contaminações cruzadas? Isolamentos efectivados por mera indicação simbólica, sem barreira entre unidades; distância inferior a um metro entre camas/berços/incubadoras; rácio profissionais/doente muito superior às recomendações; carência de equipamento de protecção individual e sua reutilização aquando escassez total; estruturas envelhecidas e inapropriadas para a desinfecção, etc. são inúmeras as circunstâncias que fazem perigar a segurança dos doentes e dos profissionais e que não se circunscrevem ao coronavírus.

Ser profissional de saúde hoje, em julho de 2020, não acarreta mais risco que o período que antecedeu a pandemia. A exposição a agentes transmissíveis já o era franca, de que o vírus da gripe sazonal ou das gastroenterites e as bactérias, nomeadamente as multirresistentes, são ímpar exemplo.

Como doença, a covid não é mais, nem menos, importante do que as neoplasias, os enfartes agudos do miocárdio, a insuficiência renal, as doenças neurodegenerativas, os acidentes vasculares cerebrais, as restantes doenças infecto-contagiosas ou a doença mental. No entanto, passou a ser o centro do olhar e da decisão política em saúde, centralização que resultou em mais de 1 milhão de consultas em suspenso e milhares de cirurgias a aguardar agendamento. Este covidcentrismo é amplamente prejudicial... prejudica os doentes, os profissionais e todo o SNS.

A melhor forma de premiar os profissionais de saúde é mediante o reconhecimento efectivo do papel que desempenham diariamente, nas mais diversas áreas de intervenção em saúde, desde os cuidados primários aos hospitais, passando pelas instituições residenciais, independentemente da situação de saúde acometida pela pessoa receptora de cuidados.

A melhor forma de premiar os profissionais de saúde é investir no SNS, dotando-o de condições estruturais e humanas, que não deixe ninguém de fora da recepção de cuidados e que evite a sobrecarga sobre todos os profissionais que os desenvolvem.

A melhor forma de premiar os profissionais de saúde é conceder-lhes uma carreira e salários dignos e que consagre o risco e penosidade associada ao exercício de funções.

A determinação de políticas coerentes transversais e que integrem todas as patologias existentes é a resposta de que o SNS e seus profissionais carece, a solução que todos as áreas funcionais de apoio à população necessitam e a segurança que as cidadãs e cidadãos requerem.

Prémios de consolação? Não, obrigado.

Ana Sartóris
Sobre o/a autor(a)

Ana Sartóris

Enfermeira na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do Hospital de Santa Maria
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