Por Serviços Digitais Públicos

porPedro Celestino

27 de março 2024 - 15:08
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Nos dias de hoje coisas tão simples como o uso do e-mail, smartphone e de modo geral da internet, tornaram-se essenciais e perder o acesso aos mesmos pode ser aterrador. É por isso de estranhar que toda esta infraestrutura seja privada, toda!

Nos dias de hoje coisas tão simples como o uso do e-mail, smartphone e de modo geral da internet, tornaram-se essenciais e perder o acesso aos mesmos pode ser aterrador.

É normal que isso assim seja, perder este acesso significa perder acesso rápido e simples a componentes fundamentais da nossa vida, começando nos contactos pessoais e sociais e indo até serviços estatais como as finanças e receitas médicas. Pelo meio está praticamente tudo, desde a possibilidade de procurar emprego, ao próprio emprego, acesso a entretenimento e arte, conteúdos educativos, facturas ou compras, marcar consultas médicas, serviços bancários de pagamento, comunicação à distancia, acesso a serviços digitais, formas de organizar a vida pessoal, das empresas, da sociedade até aos meios de criação de alguns dos sistemas mais complexos que a humanidade já construiu. Por onde quer que olhemos o digital (e a tecnologia no geral) é fundamental à nossa vida e parte significativa dos meios de produção. Já pensaram bem no problema que seria perderem o acesso apenas ao vosso e-mail, a toda a informação que perderiam e o trabalho e tempo que seriam gastos a repor tudo de novo?

É por isso de estranhar que toda esta infraestrutura seja privada, toda! O e-mail que praticamente toda a gente usa e como vimos é essencial para a vida moderna, é muito provavelmente providenciado por uma gigante tecnológica, como a Google ou a Microsoft. Com um custo associado, raramente explicito ou directo, mas sempre bastante elevado e dependente de termos e condições pesadas.

A questão a colocar é simplesmente, porque não temos um serviço de e-mail público?

Afinal é essencial para interagir com o estado e com todas as facetas da vida actual e indispensáveis utilidades como vimos mesmo agora. Não deveria o estado garantir o acesso ao mesmo.

Porque é que temos de estar completamente dependentes de privados e gigantes tecnológicos?1 Os mesmos que não respeitam aqueles que deviam ser os direitos digitais mais básicos e que nos utilizam como produtos e mercadoria, tendo ainda o poder discricionário para nos banir dos seus serviços e até do acesso às coisas que “comprámos” e pagámos a cada uma das frequentes atualizações dos “termos e condições de uso” demasiado complexos para a maioria perceber ou simplesmente ter tempo de os ler. Nunca dispensado a ameaça de que o espaço utilizado é demasiado a não ser que paguemos uma subscrição.

Não seria bom e conveniente ter uma solução pública e de qualidade, com garantia estatal e orientada para o interesse das pessoas e para o bem publico, em vez do lucro e outros interesses privados, e assim estarmos certos de não perdemos acesso a uma das ferramentas mais importantes da vida moderna?

Claro que seria importantíssimo termos direitos digitais garantidos!

Além de que não existe razões para temermos pelo destino dos privados, tal como existe a RTP, a escola pública ou o SNS lado a lado com a comunicação social, colégios e saúde privada. Poderia acontecer exatamente o mesmo com os serviços digitais. Mesmo a direita deve conceder que a coexistência dos dois seria tão pacífica como nos exemplos supra-mencionados e só uma esquerda que rejeite quase por completo a iniciativa privada é que não admitiria esta proposta.

A segunda questão a colocar é, porquê ficarmos pelo e-mail como o único serviço digital público?

Porque não criar uma alternativa ao Youtube e plataformas de streaming onde criadoras/es de conteúdos importantes são devidamente recompensados e eventualmente exista um plano adicional e responsável de mecenato ou patrocínio. Uma alternativa às redes sociais que seja devidamente moderada e onde não se permita a disseminação do pior que existe nas actuais redes. Uma alternativa aos sistemas operativos privados (com altas componentes de spyware) e processadores, tal como alternativas aos programas mais usados. Um serviço de nuvem onde guardar ficheiros importantes. Alternativas públicas a tudo o que realmente é importante. E até criar serviços de inteligência artificiais público que sejam úteis para a população e eventualmente para a administração do estado.

Mais uma vez, nada impede os privados e o privado de competirem, o Youtube e companhia poderiam continuar a existir, tal como coexistem o SNS e os grupos de saúde privada. Em rigor, esta criação de alternativas públicas permite a coexistência com a iniciativa privada (que obviamente teriam de cumprir os regulamentos normais e gerais, tal como a saúde privada), mas que deveria ser aceite pela maior parte do espectro político.

Felizmente boa parte da tecnologia necessária para a criação destes serviços digitais públicos já existe em modo open source, talvez um pouco incipiente nalguns casos, bastante madura noutros (o Linux por exemplo). Seria preciso, certamente algum investimento e até a criação de raiz de algumas alternativas, mas é tudo bastante possível. Regulamentar a acção das companhias privadas já existentes e dar-lhe obrigações e normas beneficiar-nos-ia grandemente é um facto, mas é possível, desejável e está ao nosso alcance fazer-mos as duas.

No entanto, seria mais fácil quanto mais internacional esse esforço fosse e nesse caso a União Europeia pode e deve ter um papel fundamental, especialmente se não formos alheios ao facto de que, também em matéria de serviços digitais, a UE está a tornar-se subserviente aos interesses de grandes grupos privados de fora da UE, ou interesses políticos que não são os nossos e fora do escrutínio das democracias europeias, às vezes sem pagar um tostão em impostos. Tal tem sido um dos principais gritos de alerta do conhecido economista Yanis Varoufakis (por exemplo, neste vídeo).2

Felizmente a UE, apesar das imensas cedências, tem tentado regular e investir um pouco na área tecnológica, contudo ainda falta a vontade política para o fazer à serio. Mesmo assim a UE é o único bloco político e democrático que tem feito algo a favor dos seus cidadãos/ãs, por insuficiente que seja,3 especialmente se considerarmos a força que pode realmente ter e pontualmente demonstrada no chamado “efeito Bruxelas” ou nas multas bilionárias comportamentos que impõe que por vezes aplica e as estes gigantes (como a obrigação do uso por defeito do USB-C). E boa parte dos projetos em curso, como o Chips Act, apesar do seu valor estar demasiado (ou quase unicamente) dependente de empresas privadas quando se devia apostar muito mais no sector público que desempenha um papel importantíssimo como no exemplo do Centro de Super Computação de Barcelona. Esperemos que esta vontade e projetos cresçam e se fortaleçam-se, ou melhor, lutemos para que tal aconteça.

Fica a sugestão para se começar a pensar, e talvez lutar, sobre estes assuntos.

Notas:

1 Para quem tem os conhecimentos, equipamento, recursos e está suficientemente politizado ou preocupado com a sua privacidade ou cibersegurança, pode montar o seu próprio e-mail e outros serviços, mas suspeito que apenas uma pequena minoria seja efetivamente capaz. Alternativamente existem outras empresas, privadas e bastante mais pequenas, que alegam providenciar a privacidade e maior segurança, mas é muito difícil de escrutinar tais alegações. Além de que podem sempre falir, ou decidir sair do mercado e fechar operações, deixando os utilizadores com um imenso problema nas mãos.

2 Aconselho vivamente a quem se interessar pelo assunto a ler o seu livro “Technofeudalism: What Killed Capitalism” (ainda sem tradução em português, que eu conheça).

3 Podemos debater se a razão primordial é a de favorecer os cidadãs/ãos e de não querer o enfraquecimento da soberania da UE ou se é para favorecer parte das suas elites que começam a perder relevância no novo mundo tecnológico. Pessoalmente penso que é óbvio que a primeira tem um grande peso, mas independentemente da razão, as pessoas da UE, e até fora, dela tem beneficiado destas acções, contudo deve ficar o alerta para que estas razões sejam bem escrutinadas para não trocarmos Gigantes Não Europeias, por Gigantes Europeias, pois não é a origem geográfica que mais devemos atentar, mas sim as opções de classe que são tomadas.

Pedro Celestino
Sobre o/a autor(a)

Pedro Celestino

Licenciado e mestrando em Filosofia pela Universidade de Lisboa
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