Perdes a casa, perdes tudo? Não, manténs uma dívida!

porRita Silva

07 de fevereiro 2014 - 1:00
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Uma das principais causas da crise que vivemos foi a política de habitação / construção / endividamento que o nosso país seguiu.

O incentivo ao crédito através das baixas taxas de juro, benefícios fiscais, o crédito bonificado e a cultura da casa própria foi a política de habitação, que serviu também para que a indústria da construção fosse o motor de um país que já pouco tinha a oferecer em termos económicos que não a construção desenfreada. Só em 2002, o Estado gastou, 767 milhões de euros (!!!) para apoiar diretamente o crédito à habitação (ainda a pagar a fatura dos bonificados), muito mais do que todos os outros programas naquele ano dedicados à promoção de habitação ou reabilitação: 87 milhões em construção pública, 57 milhões apoio arrendamento jovem, 30 milhões reabilitação de edifício, 1,3 apoio ao arrendamento1. Percebemos assim que, desde os anos 80, o Estado tem vindo a pagar uma fatura elevadíssima dos créditos bonificados que ainda permanecem e que este foi (é) um gasto muito elevado que, se tivesse sido investido diretamente em habitação de promoção pública, na reabilitação e no arrendamento, teria sido mais sustentável e benéfico para todos (menos para os bancos e promotores imobiliários, claro).

Foi uma festa, crédito com fartura, o preço das casas sempre a aumentar, quanto mais crédito fosse possível, mais caras seriam as casas, mais endividadas as famílias, os bancos portugueses foram buscar dinheiro lá fora, os bancos alemães e franceses esfregaram as mãos de contentes, foram tempos de lucros anuais milionários e distribuição rápida pelos acionistas. A economia assentou insustentavelmente na indústria da construção civil e no pato-bravismo que, aliados a câmaras de idoneidade duvidosa, transformavam em atos céleres, terrenos agrícolas em urbanizáveis, transformavam milhares em milhões de uma cartada só… os bolsos de alguns agradeciam.

Foi tal a festa que a dívida externa privada chegou na verdade a níveis completamente insustentáveis. O sobre endividamento do país e das famílias deu azo à justificação mentirosa de uma intervenção externa que no fundo pretendeu transformar essa colossal dívida privada em dívida pública, salvar os bancos quando começasse a chegar a falta de liquidez depois de rebentada a bolha, acabar em simultâneo com o Estado Social e produzir mais desemprego, para baixar salários e retirar direitos. Um plano que está a funcionar na perfeição!

As famílias deixam assim de conseguir pagar os seus créditos. A direita apressou-se a aprovar uma lei que, defendendo retoricamente as famílias endividadas com medidas de proteção extraordinárias, veio sobretudo deliberar que, quando se entrega a casa ao banco, a dívida não fica necessariamente extinta, se o valor atual da casa e o capital pago pela família não perfizer a totalidade do capital emprestado. Ora, sabemos que a família passou os primeiros anos (décadas) a pagar juros, tendo abatido muito pouco capital, e as casas em tempos avaliadas por cima com a cumplicidade dos bancos, são agora avaliadas por baixo. Assim, uma família que, por exemplo, tenha contraído em crédito em 1999/2000, de 90.000 euros, para comprar uma casa na periferia de Lisboa, e que entregue agora a casa por incapacidade de pagamento, manterá uma dívida de cerca de 30 a 40 mil euros.

As medidas de proteção foram o falhanço total, pois que há um número exagerado de condições prévias, cumulativas, nas quais não encaixa praticamente ninguém – o que revela a falta de conhecimento da realidade de muitos dos deputados e deputadas, ou revela que nunca foi sua intenção proteger as famílias. Em mais de 120.000 famílias com problemas no crédito à habitação, apenas 1.600 terão procurado acesso a este regime de apoio e só 297 tiveram algum tipo resposta positiva, o que revela o seu falhanço.

Perante este falhanço, ontem foram apresentadas propostas de alteração ao regime jurídico justificando a necessidade de o alargar a mais famílias afetadas. Depois de muito teatrinho lá baixaram as propostas à comissão e vão andar por ali até depois sair algo parecido com o que já existe. O que a direita também não quer ouvir falar é sobre a dação em pagamento (entrega da casa extingue a dívida). Nem pensar! É que, como disse o deputado Carlos Silva, do PSD, “isso era abrir uma auto-estrada para o incumprimento e para as famílias irem viver para debaixo da ponte”… bem… apenas duas considerações sobre esta barbaridade: as famílias neste momento fazem tudo para não deixar de pagar a sua casa, até deixam de comer, para não irem para debaixo da ponte; perdendo a casa e mantendo uma dívida de dezenas de milhares de euros é que poderão mesmo ir para debaixo de uma ponte, pois nunca mais se levantam.

As famílias são culpabilizadas pela sua situação sem ter culpa nenhuma. Vivem esta situação com embaraço, com vergonha, mas têm de perceber que foram incentivadas a comprar casa, apresentada como a única alternativa e um investimento seguro. Não têm culpa dos cortes e da perda de rendimentos, do desemprego e da desvalorização imobiliária. Estas têm de se convencer que não são culpadas, mas vítimas desta política, e têm de lutar pelo seu direito à habitação.

Já agora, podemos perguntar aos bancos, então não assumem nenhum risco? Quando pedimos empréstimo temos que pagar juros para a remuneração do banco, mas também juros que refletem/pagam o risco da operação. Assim sendo… a perda de rendimentos da família e a baixa de valor das casas deveriam ser riscos que o banco assumiu, certo? Não… Os bancos recebem de todas as formas: foi o bonificado, foram os juros, foram os preços especulativos, são as ajudas da troika e, já agora, recebem as casas e ainda continuarão a receber das famílias já sem esse teto. Bom negócio!


1 Fonte: Plano Estratégico da Habitação, relatório em progresso, 2002.

Rita Silva
Sobre o/a autor(a)

Rita Silva

Investigadora e ativista na Associação Habita
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