O Fórum Social Mundial 10 anos depois

porRita Silva

17 de fevereiro 2011 - 1:25
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O Fórum de Dacar, apesar dos problemas que teve em termos de programação e do colapso logístico existente, conseguiu organizar importantes reuniões em que a convergência foi palavra de ordem.

O Fórum Social Mundial é um processo com 10 anos e por isso será interessante fazer uma análise em jeito de balanço, procurando identificar suas conquistas e suas debilidades ou contradições, assim como necessidades futuras à luz da realidade em que vivemos. A última edição, em Dacar, juntou 75.000 participantes, com forte mobilização de movimentos de toda a África ocidental, mas também gente da Europa, Estados Unidos e, claro, América do Sul. A sensação de que este fórum representa um forte estímulo para os movimentos africanos que têm um dinamismo crescente é inegável. Por outro lado, a queda de mais um ditador africano, agora no Egipto, deu um forte alento aos activistas que celebraram entusiasticamente o acontecimento, mobilizaram-se por ele e o fórum adquiriu um tom mais político.

O fórum é um enorme evento de comunicação em que os movimentos sociais têm participado, explicando suas lutas, denunciando seus inimigos, partilhando e desenvolvendo estratégias, construindo alianças. Ao longo de dez anos promoveu fortemente a organização de redes, e redes de redes que têm agora um corpo mais robusto, estão mais articuladas e mais maduras na sua capacidade de convergência. A contradição está nas dificuldades que têm novos movimentos a entrar nestas dinâmicas e de não conseguirem ter capacidade de influência perante as fortes redes.

O fórum de Dacar - apesar dos problemas que teve em termos de programação e do colapso logístico existente, sobretudo devido à tentativa de sabotagem do evento - conseguiu organizar importantes reuniões em que a convergência foi palavra de ordem e onde se sentiu um maior amadurecimento do movimento em geral na sua capacidade de trabalhar em conjunto e de promover documentos, mobilização e preparação de acções concretas comuns. Além das convergências sectoriais, foram marcadas duas mobilizações comuns: 20 Março, acções de solidariedade com as revoluções do povo magrebino e o dia 12 de Outubro, mobilização global contra o capitalismo.

As caravanas que se desenvolveram são também elementos novos e importantes no processo do Fórum (já ensaiadas no Fórum de Mumbai mas agora promovidas de forma mais sistemática). Sete caravanas vindas de vários pontos de África ocidental e do norte percorreram milhares de quilómetros até ao fórum, desenvolvendo iniciativas e discussões, comícios e eventos ao longo do percurso, levando o fórum a vários pontos da região e trazendo centenas de pessoas dessas regiões ao fórum.

As discussões sobre o futuro do fórum andam em torno dos seguintes eixos: por um lado aqueles que defendem mais ideologia para o fórum e/ ou (conforme os casos) uma reformulação dos seus princípios no sentido de o tornar mais deliberativo e assim, supostamente, com maior capacidade de unidade na acção. Para outros, tais objectivos são impossíveis perante a diversidade existente no fórum, a qual é vista como a sua maior riqueza. Para esses o fórum continua no seu processo de construção actual com o desenvolvimento de redes, eventos e sinergias diversas de forma livre pelos seus actores, com eventuais contradições, paralelismos e sobreposições naturais à diversidade existente. Também há quem defenda que o fórum, como gigantesco espaço de comunicação, precisa de se requalificar, sob pena de se esvaziar e se tornar um "bazar" altermundialista. O mundo mudou em dez anos e por isso o fórum deverá actualizar-se nos temas, e procurar os pontos de mobilização comum mais determinantes.

A estas reflexões acrescentamos, o Fórum é um importante espaço de encontro e comunicação dos movimentos sociais e organizações diversas, é um espaço também de disputa (como todos o são) onde através destes exercícios se alargam perspectivas e análises, se marcam mobilizações comuns, e se desenvolvem sinergias e de uma forma geral contribui para incentivar lutas locais sobretudo nas regiões onde acontece e das quais incorpora novas temáticas e mobilizações. Como tal deve manter-se. Poderá ser mais ou menos espaçado no tempo, mas deve manter-se, e multiplicar-se em fóruns regionais, temáticos, nacionais e locais. Deverá também requalificar-se, procurar inovar-se, dar mais dignidade às condições da organização e da comunicação e concentrar-se no envolvimento de outras gentes e no apoio à participação dos movimentos sociais de base, que desenvolvem lutas muito importantes em condições extremamente precárias e, muitas vezes, têm muito poucas condições materiais para participar nos fóruns ou para participar nas suas discussões. Estes movimentos são importantes porque muitas vezes juntam milhares em torno de lutas concretas em torno da terra, da habitação, da produção agrícola, na luta ecológica, do trabalho, assim como jovens e estudantes. O esforço de envolvimento destes participantes dará bons frutos e a sua integração no processo mais abrangente é necessária.

Mas o fórum é apenas uma peça no processo da luta por um outro mundo... que, apesar das disputas internas, nesta edição se afirmou mais fortemente contra o capitalismo. Outras iniciativas serão fundamentais fora do espaço do fórum. Vivemos uma época de crises estruturais: ambiental, financeira, económica, alimentar. Estas crises destruíram a base ideológica do neoliberalismo que encontrava justificação teórica na afirmação de que a mão invisível do mercado é a melhor regulação, que tudo arranjará, e assim quanto menos Estado melhor. Essa teoria caiu por terra, sobretudo quando o que o neoliberalismo produziu foram crises sucessivas e de fortíssimo impacto que recorreram aos Estados para salvar o que os mercados destroem com a avidez que os caracteriza. Actualmente, o capital procura novas formas de se auto-justificar. Tudo indica, pelos sinais que vão aparecendo que as respostas vêm mais à direita e mais agressivas ainda. Simultaneamente, as esquerdas estão também em crise pela falta de capacidade de mobilizar e responder eficazmente às consequências das crises actuais e promover a transformação necessária, assim como fazer face às ameaças da extrema direita. É fundamental, apesar da diversidade e com esta como elemento a valorizar, avançar para a construção de plataformas políticas amplas que tenham como objectivo apresentar alternativas políticas fortes com capacidade de fazer face ao avanço do capitalismo e das direitas, que tenham capacidade de integrar partidos e movimentos em processos amplos de convergência. Será isto possível? a ver vamos, mas os custos de não o fazer serão certamente muito maiores. No entanto, é importante encontrar boas formas de articulação entre movimentos e partidos (o que continua a ser tabu no FSM, apesar de os partidos estarem e naturalmente disputarem também este espaço). Apesar de os movimentos se terem reforçado neste processo e de conseguirem também gerar muitas vitórias parciais muitas vezes esquecidas, sente-se que o movimento social e as esquerdas enfrentam grandes desafios e têm fragilidades; o apelo à urgência na acção e à procura de respostas e a insistência na convergência foram palavras de ordem.

Rita Silva
Sobre o/a autor(a)

Rita Silva

Investigadora e ativista na Associação Habita
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