Mudar os “brancos costumes” do Faial

porAurora Ribeiro e Ella Statmiller

03 de abril 2024 - 23:46
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Como vivemos no país que acredita ser de brandos costumes existe a tendência para olhar para estes crimes como casos isolados, desligando-os de uma realidade social mais abrangente.

Foto da organização da manifestação contra o racismo no Faial, realizada a 20 de março

Sobre o assassinato de Ademir Moreno, cidadão de origem cabo-verdiana, importa citar as testemunhas oculares, que afirmam ter-se tratado de crime de ódio racial e mencionam insultos racistas à vítima antes da agressão. Segundo as mesmas, já teriam havido agressões e insultos do mesmo teor nessa noite e em alturas anteriores por parte do agressor e de pessoas próximas. O tribunal da Horta emitiu um comunicado em que o suspeito agora em prisão preventiva é “indiciado do crime de homicídio qualificado” e fala de “intercedência de motivação racial”.

Como vivemos no país que acredita ser de brandos costumes (Joana G. Henriques chamou-lhes antes, com maior precisão, “brancos costumes”) existe a tendência para olhar para estes crimes como casos isolados, desligando-os de uma realidade social mais abrangente. No entanto, essa realidade existe para qualquer pessoa que esteja atenta. Ela é ainda confirmada pelos estudos sociológicos: a maioria dos portugueses acredita que há raças superiores mas acha-se menos racista que os outros europeus.

O European Social Survey demonstrou em 2020 que 62% dos portugueses manifestavam racismo e que apenas 11% da população discordava de todas as crenças racistas. A cor da pele e a nacionalidade ainda interferem quando se procura alugar uma casa e arranjar emprego. Existe discriminação racial na polícia portuguesa. Pior do que isso: há pessoas que morrem apenas por ser negras, como foi o caso de Alcindo Monteiro, Bruno Candé, só para citar os mais conhecidos. Acreditamos que se passou o mesmo com Ademiro Moreno.

O que importa perceber é que o Faial não é diferente do resto do país e da região. Nem na manifestação do racismo nem na crença no mito infundado de que estaria livre de racismo. Não está.

No passado dia 19 de Março, cerca de 200 pessoas juntaram-se em frente ao Município da Horta exigindo justiça por Ademir Moreno. Pela primeira vez saímos à rua e enfrentámos o que ainda não havia sido discutido cá: o racismo, a xenofobia e o preconceito na ilha do Faial. Foi um grito do Ipiranga em que, em uníssono, dissemos “não ao racismo”! Além da homenagem à vítima, houve partilha de dores, frustrações e a certeza de que nunca mais nos deixaremos silenciar.

A morte de Ademir Moreno despertou o sentimento de que temos de mudar a realidade vigente. A vigília desempenhou um importante papel em quebrar a primeira barreira: a ignorância. Incentivou-se o diálogo aberto, a consciencialização e a mudança social. Ademir Moreno merece que se faça justiça e estamos presentes para que o debate não se fique pelo tribunal e seja também feito na rua.

O primeiro passo no combate ao racismo é o reconhecimento da sua existência, para o o que se exige o compromisso de toda a sociedade e, sobretudo, dos nossos governantes. Estes têm um papel crucial nas políticas antirracistas e na promoção de iniciativas que incentivem à reflexão crítica sobre o tema. A presença de pessoas não brancas em lugares de tomada de posição é fundamental para que mais vozes estejam representadas. A nível individual, é fundamental que as pessoas estejam dispostas a ouvir, educar-se sobre estas questões, participar dos protestos e ter mais atenção ao discurso utilizado. Somente através de uma abordagem multifacetada e colaborativa é que podemos construir uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária.

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