Morte assistida: mudança ou aprofundamento do paradigma de sociedade em que vivemos?

porHugo Ferreira

06 de abril 2017 - 22:32
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Reflexão que tenta sintetizar e compilar os principais (contra) argumentos políticos e éticos que têm sido esgrimidos no debate público pelos defensores da despenalização da morte assistida.

Nota introdutória

O texto que se segue corresponde, no essencial, à intervenção que fiz no debate sobre a despenalização da morte assistida (“Eutanásia: Que paradigma de sociedade queremos?”), organizado pela Juventude Popular, no passado dia 1 de abril, onde também foi orador o Ex-Bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva. Esta é uma reflexão que tenta sintetizar e compilar os principais (contra) argumentos políticos e éticos que têm sido esgrimidos no debate público pelos defensores da despenalização da morte assistida, analisando-os e fundamentando-os a partir de uma perspetiva que se deseja global, tal como o exigido, aliás, pelo título do debate atrás mencionado.

A discussão em torno da despenalização da morte assistida, como todos temos tido oportunidade de testemunhar, nem sempre tem primado pela racionalidade argumentativa e analítica, o que em parte se compreende atendendo ao que está em jogo. Mas essa racionalidade, aliada ao respeito e à valorização genuína dos diferentes pontos de vista suscetíveis de ser perfilhados, é essencial para enriquecer a discussão e aperfeiçoar as distintas soluções políticas e legislativas abstratamente possíveis.

  • Mudança de paradigma?

Feito este introito, não há como deixar de começar pela interrogação seguinte:

As alterações que têm merecido um amplo e aprofundado debate sobre a despenalização e regulamentação da morte assistida, iniciado por um movimento de cidadãos, seguido de uma petição pública e que depois deu origem à apresentação do anteprojeto de lei do Bloco de Esquerda sobre esta matéria, configuram uma mudança de paradigma da sociedade em que vivemos?

Segundo o ponto de vista aqui defendido é evidente que uma solução como a preconizada no anteprojeto de lei do Bloco não só não consubstancia uma mudança de paradigma na nossa sociedade, como constitui, pelo contrário, um novo passo no caminho que a sociedade portuguesa e a nossa ordem jurídica têm vindo a percorrer no sentido de uma conceção do estado respeitadora e promotora da liberdade pessoal, da autodeterminação individual, da pluralidade de mundividências e da tolerância. Os exemplos práticos e legislativos deste percurso são variados e, então como agora, ainda que hoje com maior carga dramática, estão em jogo duas conceções distintas de Estado e, em especial, do tipo de intervenção que o Estado deve assumir no âmbito da esfera individual de cada pessoa:

  • Conceção Paternalista

Uma conceção que se tem tornado comum denominar como “paternalista” e que creio poder exemplificar-se com a frase seguinte: “o estado tem a obrigação de proteger os cidadãos de si próprios”. Segundo esta conceção cumpre ao Estado, em determinadas circunstâncias, não apenas o direito, mas a obrigação de se imiscuir nas múltiplas dimensões da vida privada ou íntima dos cidadãos, em especial quando as decisões ou opções preconizadas por alguém, no âmbito da sua esfera individual, se desviam do leque de premissas axiológicas que o Estado reputa como corretas. Trata-se, por outro lado, de um entendimento que secundariza a capacidade e apetência da pessoa para discernir e decidir o que é melhor para si própria, atribuindo ao Estado a responsabilidade desse juízo e dessa avaliação.

Aqui chegados, as questões que se impõem são as seguintes:

Numa sociedade que diz confiar na autonomia da pessoa humana e que diz valorizá-la, que espaço sobra para uma intervenção do Estado que se traduza na negação e repressão criminal de manifestações concretas do exercício dessa autonomia, designadamente no que diz respeito à vontade livre, séria, informada e reiterada de morrer em paz e de acordo com os critérios de dignidade que cada um construiu ao longo da sua vida?

Será esta perspetiva paternalista compatível com as exigências éticas e democráticas de uma sociedade como a nossa, promotora da pluralidade de mundividências e da tolerância?

Na resposta a estas questões está o centro de todas as divergências em torno da despenalização da morte assistida.

  • Conceção Personalista

Ora, segundo a conceção que perfilho, a abordagem a um tema tão amplo e complexo como é o da despenalização da morte assistida exige que se estabeleça aquilo que no Direito é comum designar-se como “concordância prática” dos múltiplos direitos e princípios fundamentais aqui chamados à colação. Quer isto dizer que a abordagem desta questão exige um esforço de compatibilização prática dos diferentes valores fundamentais em jogo, que seja capaz de encontrar um equilíbrio entre o significado e alcance de cada um deles. Exige, numa palavra, que se reforcem os laços comunicantes entre os múltiplos comandos axiológicos aqui em disputa. E que direitos, princípios e valores são esses?

1. A dignidade da pessoa humana, prevista logo no artigo 1.º da CRP;

2. O direito à vida, preceituado no artigo 24.º da CRP;

3. A liberdade, quer enquanto direito à autonomia, que o artigo 27.º da CRP consagra, quer na dimensão de liberdade de consciência, plasmado no artigo 41.º da CRP;

4. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, contemplado no artigo 26.º da CRP.

No âmbito da discussão em torno da despenalização da morte assistida, como noutras discussões onde se verifica igualmente uma situação de “conflito de direitos” fundamentais, a posição que entendo melhor se coadunar com as exigências éticas e democráticas da sociedade plural em que vivemos é justamente aquela que, reconhecendo sempre a importância e o papel específico de cada um destes direitos, não os perceciona nem interpreta de forma redutora, isto é, extraindo deles apenas os seus significados literais, restritos ou imediatamente apreensíveis, nem de modo isolado, ou seja, desligados dos restantes direitos e valores fundamentais que integram o nosso sistema constitucional.

Exemplificando, é fácil perceber que a interpretação isolada e absolutizada de cada um destes direitos pode determinar posições distintas sobre este tema, conforme o(s) direito(s) fundamental(ais) que cada um entenda ser(em) merecedor(es) de maior proteção e aprofundamento legislativo. Quem, no âmbito da discussão em torno da despenalização da morte assistida, opte por levar em linha de conta exclusiva ou primordialmente o direito à vida, em especial no seu entendimento mais restrito e imediato, tende a manifestar-se contra em todas as circunstâncias. Pelo contrário, quem entenda tomar partido sobre esta matéria apenas ou essencialmente à luz da liberdade, na suas dimensões de autonomia individual e de liberdade consciência, ou do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, tenderá a manifestar-se a favor, seja qual for o contexto concreto em causa.

Assim se percebe, pois, a importância e a razoabilidade da posição daqueles que, com o objetivo de encontrar uma solução legislativa adequada e ponderada, entendem ser necessário alcançar um equilíbrio, a tal “concordância prática”, entre os vários direitos fundamentais mobilizáveis em torno da questão da despenalização da morte assistida. Não há, pois, nenhuma mudança de paradigma na sociedade. Há, isso sim, um novo aprofundamento do paradigma personalista que a sociedade portuguesa e a sua ordem jurídica há muito vêm percorrendo no âmbito das relações entre o Estado e a esfera individual dos cidadãos e das cidadãs. Nas certeiras palavras do Professor Jorge Reis Novaisdeve ser reconhecido a cada pessoa que seja competente para formar uma vontade, o poder de conformar a sua vida de acordo com as suas próprias conceções, naquelas áreas mais íntimas, naquelas áreas mais vitais da sua existência. Não deve ser o Estado a impor-lhes uma visão do mundo, uma conceção de como deve levar a vida, deve ser a pessoa a definir isso. E a questão que se pode perguntar é se a posição sobre a morte entra ou não, deve entrar ou não também neste tipo de decisões. A meu ver, entra”.

  • Fantasmas e mitos

Antes de avançar com a explicitação das soluções propostas pelo Bloco de Esquerda, importa ainda deixar claro não apenas o que significa especificamente a despenalização da morte assistida, mas também o que ela não significa e aquilo em que ela, segundo a posição que temos vindo a defender, não se traduzirá.

Em primeiro lugar, aquilo que se propõe não é a liberalização, mas a despenalização da morte assistida, o que significa que o exercício deste direito não é criminalmente punível se e quando se verificarem as circunstâncias concretas que adiante enunciarei.

Em segundo lugar, da despenalização da morte assistida não decorre qualquer obrigatoriedade de a ela recorrer, antes se coloca essa possibilidade no leque de opções à disposição do doente.

Em terceiro lugar, o debate sobre a despenalização da morte assistida só tem a ganhar se se centrar em torno das soluções e propostas concretas efetivamente em discussão e não, como muitas vezes sucede, com a referência permanente a soluções adotadas noutros países. Essa associação incorre, aliás, num erro duplo: 1- centra as críticas em soluções adotadas por outros países que não são propostas em Portugal; 2- podem significar, em última análise, uma demissão do Estado da sua tarefa de enquadrar legislativamente situações cuja regulação a sociedade reclama.

Em quarto lugar, é falsa a dicotomia que se pretende estabelecer entre a morte assistida e os cuidados paliativos, cuja qualidade e acesso deverão, obviamente, ser melhorados, como, aliás, em todas as ocasiões o Bloco de Esquerda tem defendido. Efetivamente, se essa for a vontade do doente, por que motivo lhe deve ser negado o direito de passar o seu último mês de vida em casa com a sua família, de forma lúcida, ao invés de estar três meses praticamente inconsciente numa unidade de cuidados paliativos?

Finalmente, ao contrário do que muitas vezes é veiculado por alguns opositores da despenalização da morte assistida, uma solução como a que é proposta pelo Bloco não determinará qualquer alteração da estrutura de valores éticos ou deontológicos vigentes na medicina. Por um lado, não só é vasto o leque de soluções legislativas adotadas em Portugal que vão no sentido do aprofundamento da autodeterminação individual do doente1, como o próprio Código Deontológico da Ordem dos Médicos contempla, em várias das suas disposições, soluções que apontam nesse sentido2. Por outro lado, na análise desta situação não deve obliterar-se que existe desde há muito um consentimento ético e legal relativamente à “eutanásia passiva” – o doente, a sua família ou uma equipa médica suspendem ou recusam um determinado tratamento por considerá-lo, atentas as circunstâncias, inconsequente ou desproporcionado – e à “eutanásia indireta” – com o objetivo de reduzir o sofrimento do doente, é-lhe ministrada uma determinada carga medicamentosa cujo efeito pode traduzir-se também na abreviação do seu tempo de vida (duplo efeito). Aliás, o Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, em documento publicado na Revista desta Ordem profissional (Setembro de 2012, n.º 133), aprovou um conjunto de orientações a adotar em casos de doenças incuráveis e situações que os médicos devem optar por suspender os tratamentos3. Comum a todos estes casos é a ausência do consentimento livre, esclarecido e reiterado do doente, justamente um dos critérios fundamentais que sustentam a proposta do Bloco de Esquerda para despenalizar a morte assistida.

  • Proposta

A grande vantagem de uma discussão que tem propostas em cima da mesa é que, com elas, o debate ganha objetividade e rigor, perdendo espaço a argumentação que aposta a quase totalidade das suas fichas na agitação de fantasmas e na criação e alimentação de mitos.

Assim, conforme enuncia o artigo 1.º do anteprojeto de lei do Bloco de Esquerda, aquilo que, efetivamente, está em jogo é definir e regular as condições em que “as condições em que a antecipação da morte por decisão da própria pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde, não é punível”. Quer isto dizer que a despenalização da morte assistida apenas tem lugar quando:

a) Decorrer de decisão do doente, excluindo-se os menores e as pessoas com qualquer tipo de anomalia ou perturbação psíquica;

b) A vontade do doente for manifestada de forma livre (de qualquer tipo de pressões externas), séria, esclarecida e reiterada, sendo suscetível de revogação a todo o tempo;

c) O doente padecer de lesão definitiva ou doença incurável e fatal e encontrar-se num estado de sofrimento duradouro e insuportável;

d) For praticada ou ajudada por profissionais de saúde, prevendo-se a intervenção do médico responsável, que acompanha o doente desde a primeira hora, o médio especialista e, eventualmente, um psiquiatra, sendo a todos eles assegurado o direito de objeção de consciência.

Trata-se, pois, de uma proposta que reputamos razoável para dar resposta a uma realidade que, reforçamos, exige o devido enquadramento legislativo. Como proposta que é encontra-se em discussão e está aberta a todos reparos e sugestões que contribuam para o seu aperfeiçoamento. Essencial é que o caminho seja feito e com ele seja aprofundado o paradigma personalista que a sociedade portuguesa há muito escolheu percorrer.


1 Uma análise mais pormenorizada dessas soluções pode ser encontrada no relatório da Petição n.º 103/XIII/1.ª cujo autor foi o Deputado José Manuel Pureza (“2.1.3 – Legislação sobre direitos dos/as doentes”).

2 A este propósito consultar, por exemplo, o disposto nos artigos 5.º (Qualidade dos cuidados médicos), 20.º (Consentimento do doente), 21.º (Doentes incapazes de dar o consentimento), 25.º (Informação de diagnóstico e prognóstico), 26.º (Respeito pelas crenças e interesses do doente) e 67.º (Morte).

3 Entre outras, estão em causa as seguintes situações: sepsis sem resposta, paragem cardiorrespiratória sem recuperação, as insuficiências cardíaca ou respiratória terminais com falência irreversível multiorgânica, doenças neurológicas graves em estado vegetativo, cancros em estado terminal e irreversível, insuficiência renal crónica em hemodiálise com demência, AVC ou neoplasia metastizada.

Hugo Ferreira
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