“Estamos perante um caso de enviesamento da prestação de um serviço de transporte”

porHeitor de Sousa

17 de março 2017 - 12:27
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Bloco propõe novo regime jurídico para a atividade de transporte de passageiros em veículos descaracterizados e recomenda a adoção de medidas que acelerem modernização no setor do táxi tradicional.

Três anos depois:

  • da multinacional Uber ter começado a exercer uma atividade remunerada de transporte de passageiros em veículos automóveis ligeiros, configurando uma atividade de tipo táxi sem estar licenciada para o efeito;
  • de duas petições, uma a favor da Uber e outra contra, terem sido discutidas nesta câmara;
  • de diversas e enérgicas manifestações de profissionais do táxi, que denunciaram o imobilismo dos governos e das autoridades, que tardaram demasiado tempo a aplicarem decisões dos Tribunais, as quais apontaram claramente para a proibição da atividade da Uber, e de esta ter continuado a desenvolver a sua atividade ilegalmente;

O tema chega finalmente ao plenário da Assembleia para, espera-se, possa começar a ser discutido e, nas próximas semanas, venha a ter um epílogo que defenda o interesse público, reponha o respeito pela lei a todos os que exercem atividades económicas no país e as compatibilize com o direito à mobilidade no contexto dos sistemas de transporte, público e privados, existentes nos municípios e nas principais regiões metropolitanas.

Porque o assunto está relacionado com a prestação de uma mesma tipologia da prestação de um serviço público de transporte, em veículos que devem estar licenciados para um serviço em táxi, e também porque o Governo apresentou a proposta de um novo regime jurídico para esta atividade, as propostas do Bloco têm duas componentes:

  1. Uma primeira, um projeto de lei, que se equivale formalmente à proposta de lei do Governo, e que defende um novo regime jurídico para a atividade de transporte de passageiros em veículos automóveis descaracterizados;
  2. Uma segunda, um projeto de resolução que recomenda a adoção de um conjunto medidas que acelerem a modernização e uma maior transparência no setor do táxi tradicional.

O Governo, erradamente quanto a nós, entende que a característica essencial do serviço público de transporte prestado por aquelas empresas é o facto de se organizar “a partir de plataformas eletrónicas”, em veículos automóveis não identificados como táxi.

Nós achamos que não. Achamos que o Governo, inverte os termos da questão: a dita “plataforma eletrónica” é apenas um meio de angariação de serviços, tal como acontece com uma central telefónica que funciona para os táxis. Com uma grande diferença: é que, atrás da dita “plataforma eletrónica”, esconde-se uma empresa, que não aparece nos radares da mobilidade, mas que permite às multinacionais do setor, organizarem uma gigantesca transferência de recursos para fora do país sem terem de pagar, no ato da venda do transporte, um cêntimo de imposto, a que acresce o facto de se eximirem de cumprir com a legislação no país, quer ao nível do transporte de passageiros, quer ao nível da legislação laboral e fiscal.

Como? Remetendo essas obrigações para uma miríade de pequenos prestadores de serviços, a que chamam “parceiros”, mas que são completamente esmagados e sugados por uma empresa monopolista que detém o software e que põe e dispõe sobre as condições, preços e contratos, desde logo junto dos profissionais para quem esta atividade constitui o seu principal meio de vida.

De facto, estamos perante um caso de enviesamento da prestação de um serviço de transporte, intermediado por uma plataforma eletrónica através da qual se realiza a angariação do serviço de transporte.

O mercado daquelas empresas é o dos transportes, mais especificamente, o do transporte individual de passageiros a pedido, em moldes semelhantes ao táxi, como aliás, os Tribunais sentenciaram.

A realidade comprova essa coincidência de mercado: o transporte individual de passageiros a pedido, que até 2014 foi ocupado exclusivamente pelos táxis, e que desde então tem sido disputado pela Uber e Cabify, a partir de veículos descaraterizados.

Não é por acaso que, territorialmente, estes têm a sua expressão maior nas mesmas localidades. De resto, a concorrência é mais intensa precisamente nos mercados onde a dimensão regional do mesmo é mais relevante, ou seja, em Lisboa, Porto e Algarve.

Por isso, a Proposta de Lei nº 50/XIII ao pretender invocar a existência de um novo mercado de prestação de um serviço de transporte “a partir de uma plataforma eletrónica”, confunde o meio com o fim e escamoteia o facto de haver operadores, como a Uber e Cabify, que atuam no mesmo mercado com uma prática ilegal de dumping nos preços, por não estarem obrigados a respeitar um enquadramento regulatório que apresenta custos incontornáveis para quem está neste setor dentro da lei.

As propostas que defendemos visam, pelo contrário, corrigir o enviesamento político e jurídico da proposta do Governo.

Por isso se propõe um enquadramento legal equitativo no que se refere a licenciamentos da atividade, de veículos e de motoristas, assim como a contingentação de veículos em atividade por cada município em termos semelhantes ao que já acontece com os táxis regulares, admitindo-se como regra geral, um máximo de uma quota de 25% de veículos descaracterizados face ao número de táxis existentes.

Quanto ao serviço tradicional do táxi, defendemos um conjunto de medidas que promovam a modernização e transparência no subsetor do táxi.

A contingentação é um instrumento fundamental para o planeamento e a regulação de políticas de mobilidade e de proteção do ambiente. Contudo, nos maiores municípios, as câmaras deixaram de emitir licenças há muito tempo, tendo-se criado um mercado paralelo de licenças de táxi, geralmente com preços bastante superiores aos que as autarquias as emitem. Com este processo, as regras impeditivas da concentração, que os concursos públicos impõem, são desvirtuadas. Por isso, algo de essencial tem de mudar para acabar com o mercado paralelo da compra/venda de licenças dos táxis.

Outra das preocupações do Bloco de Esquerda prende-se com a proteção laboral dos motoristas de táxi, pelo que se defende o respeito dos direitos laborais e, em particular, o ataque à precariedade como um dos seus maiores problemas.

Por fim, a generalização da aplicação da tecnologia da georreferenciação do veículo aos táxis permitirá certamente introduzir mais transparência no que toca à perceção dos percursos e respetivas tarifas pelos clientes do táxi.

Declaração Política sobre a Projeto de Lei do Bloco de Esquerda sobre o transporte em Veículos Descaraterizados e a modernização do setor do táxi”, 17 de março de 2017

Heitor de Sousa
Sobre o/a autor(a)

Heitor de Sousa

Economista de transportes
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