Cavalo de Troia chamado ISDS

porIsabel Pires

27 de novembro 2015 - 10:52
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O ISDS é um instrumento que garante a investidores o direito de utilizar procedimentos de resolução de litígios contra um governo estrangeiro.

Quando se discute Europa ou construção europeia é recorrente uma certa ambiguidade em algumas argumentações: por um lado, que estamos perante processos cada vez mais transparentes e que chegam mais aos cidadãos, que têm cada vez mais poder de participação; por outro lado, que os processos negociais (sejam eles de alargamento, de tratados de comércio livre, etc) têm que ter alguma reserva e serem apenas negociados em altas instâncias.

Ora, a realidade diz uma coisa diferente: que os cidadãos não estão mais envolvidos, que não têm maior conhecimento ou poder de participação e que, de facto, as decisões que afetam as nossas vidas estão cada vez mais longe de nós ou de as podermos afetar de alguma forma.

Na verdade, desde o início que era suposto ser assim: uma senda de criar uma máquina que funcionasse de forma autónoma, retirando, a pouco e pouco, a capacidade de decisão de cada Estado-Membro ou da discussão ou referendo de alguns tratados-chave pelos povos da Europa.

Um dos casos mais recentes foi o Tratado de Lisboa, que veio implementar alterações, nomeadamente ao nível legislativo, na aplicação direta de diretivas europeias nos quadros legais dos Estados-Membros. Por mais que houvesse tentativas de referendar o tratado, esse processo foi sempre travado por quem manda, porque não lhes servia, porque a máquina política criada se baseia numa farsa democrática.

Hoje, estamos perante uma situação de iminência de possível finalização de negociações de um tratado de escala global, com implicações para lá de tudo o que até agora foi feito: o TTIP, Tratado de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento.

Falamos de um tratado negociado entre União Europeia e Estados Unidos da América, com o maior secretismo visto na história recente de negociações, com o objetivo de levar ao seu extremo o mercado livre, liberalizando ao máximo as transações entre estes dois lados do Atlântico e fazendo desaparecer mecanismos de regulação nacionais.

Entre muitas coisas que este tratado pretende impor, há um ponto fulcral para o qual devemos estar todos e todas muito atentos: o TTIP cria o mecanismo apelidado de ISDS, Resolução de Litígios entre os Investidores e o Estado. À primeira vista, não aparenta nada de muito estranho; mas quando começamos a investigar e a perceber as poucas informações que vêm saindo a público chega a provocar um arrepio na espinha.

Este mecanismo tem a seguinte premissa: é um instrumento de direito internacional público que garante a investidores o direito de utilizar procedimentos de resolução de litígios contra um governo estrangeiro. Ou seja, caso um investidor do país X invista no país Y, em que ambos tenham acordado a implementação do ISDS, e se o país Y violar os direitos garantidos ao investidor, este pode levar a matéria perante um tribunal arbitral.

Este mecanismo acarreta dois princípios que deveriam ser absolutamente e totalmente inaceitáveis para qualquer Estado: em primeiro lugar, coloca no mesmo patamar legal um estado e uma empresa. Este princípio é de uma perigosidade enorme, e, apesar das lacunas a nível de direito internacional, abre um precedente sem memória para que o ataque aos cidadãos se faça de alguma forma “legal”.

Em segundo lugar, limita os Estados na capacidade dos seus governos de implementarem reformas ou implementarem programas políticos em áreas como saúde pública, proteção ambiental, direitos humanos, direitos laborais, regulação de mercados, etc. A tentativa de limitação de criação de políticas públicas não é nova, mas com este tratado fica, definitivamente, plasmada em papel a um nível mais alargado.

Isto porque este mecanismo não é propriamente novo, e já está plasmado, por exemplo no NAFTA (capítulo 11) e em vários tratados bilaterais entre alguns Estados. E porque não é novo (mas está a ser atualizado para que seja mais refinado) já temos exemplos deste poder que é dado a investidores porque retirado aos Estado.

Apenas para dar um exemplo, a Philip Morris (grande tabaqueira) processou o Uruguai e a Austrália porque estes países aprovaram leis anti-tabaco; qual o argumento da empresa? Como os avisos nos maços previnem que, de forma eficaz, seja exibida a marca, a mesma alega que não tem os lucros esperados com a comercialização de tabaco.

O que temos, então, aqui? Uma empresa a processar dois Estados porque decidiram tomar medidas no âmbito de saúde pública. E porque um estado decide legislar dentro da sua área de competência e, ainda mais, na área de saúde pública, é processado por uma grande empresa em milhões de dólares, por lucros que este esperava atingir, mas afinal não vai conseguir!

Até pode ser de difícil compreensão como é possível tal situação acontecer, mas infelizmente não é um caso isolado. E menos isolado se vai tornar caso avancemos com o TTIP que traz, qual cavalo de Troia, uma armadilha gigante para a determinação de políticas públicas essenciais a cada país, o ISDS.

Muito embora queiram continuar com uma prática em que os cidadãos nada têm a dizer sobre estas matérias, há que reverter esta situação e começar um debate público sério sobre estes temas são fundamentais. São fundamentais tanto mais que têm consequências diretas e extremamente gravosas no dia-a-dia de cada um e cada uma de nós.

Isabel Pires
Sobre o/a autor(a)

Isabel Pires

Dirigente do Bloco de Esquerda. Licenciada em Ciências Políticas e Relações Internacionais e mestranda em Ciências Políticas
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