Natália Correia: a censura de "O Homúnculo"

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. No cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista. Por Ana Bárbara Pedrosa.

30 de agosto 2019 - 12:16
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A peça O Homúnculo, editada em 1965 por Luiz Pacheco, foi a primeira de um conjunto de três peças teatrais de Natália Correia que partiram de uma acutilante mundividência sobre a situação histórica e política de Portugal. Imediatamente apreendida pela PIDE, a peça é uma tragédia jocosa sobre a figura de Salazar. Satírica e demolidora, ridiculariza a figura do ditador e ainda de várias outras figuras cruciais para o desenvolvimento e a manutenção do Estado Novo.

A peça é a primeira parte daquilo a que Armando Nascimento Rosa chamou trilogia dos mitos lusitanos, sendo seguida por A Pécora (1967) e por O Encoberto (1969). Nascimento Rosa encontrou afinidades entre as três obras que lhe parecem suficientes para irmaná-las, ainda que a autora nunca tenha sugerido quer a nomenclatura quer o agrupamento textual. O autor argumenta não só pela proximidade cronológica da redacção das obras, já que foram as três publicadas no curto espaço de três anos, mas também pelas parecenças na concepção estilística dos temas: os títulos das obras, compostos por um artigo definido e um substantivo, voltam a atenção para mitos da história portuguesa. Assim, O Homúnculo orienta-nos para Salazar, A Pécora para as aparições de Fátima (1917) e O Encoberto para o mito sebastiânico. As três interrogam a identidade portuguesa, compõem uma visão panorâmica de uma parte relevante do imaginário nacional.

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. De facto, o ditador leu a obra num serão e ficou profundamente impressionado com Natália Correia, ainda que a sua figura se visse por ela ridicularizada. Quando lhe comunicaram a apreensão da obra e a iminente prisão da autora, pediu que retirassem a obra de circulação, mas que não fizessem mal a quem a houvera escrito, gabando-lhe a inteligência.

O Homúnculo: um anão e um reinado

Pequena peça de cinco actos, O Homúnculo, peça teatral que é ainda uma sátira política, junta a estética surrealista ao teatro do absurdo. Logo no início, depreende-se qual será alvo de sátira na peça, não só pela descrição das personagens e do cenário, mas também pelas escolhas semânticos e fonéticas levadas a cabo pela autora. A acção decorre “no palácio de el-rei Salarim, senhor absolutíssimo da Mortocália, país de dez milhões de habitantes e outras estátuas de heróis que outrora o glorificaram, antiquissimamente alojado na Europa”. No mesmo movimento, há provocação e transparência. As alusões das metáforas são transparentes: é fácil entender que Salarim remete para Salazar, não só pelas parecenças semânticas e fonéticas dos nomes, mas também pelo lugar que ambos ocupam no topo da hierarquia de um poder sobre dez milhões de habitantes; ao mesmo tempo, Mortocália funciona como epónimo de Portugal, o lugar amordaçado pelos ditames ditatoriais onde milhares de pessoas são condenadas à morte através da guerra colonial.

Salazar é ridicularizado também através do próprio título da peça. A palavra homúnculo serve para gozar com as suas pretensões, para deslegitimar o lugar que ocupa no topo da hierarquia do poder ou, pelo menos, para desvalorizá-lo. Com ela, Natália Correia tenta espezinhar e minimizar o ditador através de um olhar superior sobre o mesmo. Desta forma, torna-o motivo de gozo e de riso, destrói as hierarquias simbólicas, desafia o poder que Salazar queria incontestável. Neste cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista.

Décadas volvidas após a publicação da peça, O Homúnculo torna-se em muito mais do que uma sátira à situação do Portugal da década de 60. Estando ligada ao seu tempo, ultrapassa-o e questiona as estruturas dos poderes absolutos, impondo com a sua leitura a reflexão sobre os modelos sociais totalitários e as imagens fabricadas dos ditadores. Para impor esta reflexão, a autora usou uma arma que voltaria a usar na sua produção dramatúrgica: o humor que o ridículo provoca. Ridicularizando o ditador, a autora deslegitimava-o e tirava-lhe a carga do medo que impunha. O escárnio que usava na literatura era, assim, uma arma política, daí que não possa estranhar-se que O Homúnculo tenha de imediato conhecido a censura por parte do regime. A mundividência da autora sobre o ditador projectava-o para o lado contrário da imagem que ele tinha e queria ter: ao invés de um homem forte, decidido, independente, poderoso, com um grande Império nas mãos, havia um homúnculo, um anão, um homem insignificante, pequeno, vil, que agia como fantoche às mãos de outro poder, não tendo poder real, alimentando as suas fantasias de poder imperial numa terra iminentemente agrícola.

A censura de O Homúnculo

Mesmo tendo a obra sido proibida no dia seguinte à leitura de Salazar, teve uma representação clandestina na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no final dos anos 60. Tratou-se de uma leitura encenada, à porta fechada, e foi feita por um grupo de estudantes universitários dirigidos por José Manuel Osório, à data aluno da Faculdade de Direito de Lisboa. O evento aconteceu já depois de Salazar ter caído da cadeira, numa altura em que era já o figurino no poder que Natália Correia retratara na peça.

A peça acabou por ser levada a cena no ano 2015, no Teatro Estúdio Fontenova, tendo sido encenada por José Maria Dias, depois de quase meio século na gaveta.

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