A esquerda como estado de alma?

30 de setembro 2011 - 15:11

Contributo de Mário Tomé

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Com um abraço para o Ricardo Sequeiros Coelho pelo seu «ponto de ordem» (Contribuição para a crítica da crítica)

Oscar Wilde: o progresso é a concretização de sucessivas utopias

Karl Marx: à humanidade (ao «homem») só se colocam os problemas para os quais já tem os meios de os resolver

idem As ideias, os princípios, as categorias são produtos históricos e transitórios. Apenas a abstracção do movimento é imutável

Frederich Engels: não há princípios, o que há são conclusões

idem : Marx considerava que a revolução tinha de contar exclusivamente com a unidade dos trabalhadores obtida pela apropriação do conhecimento e pela luta.

Marx/Engels: Nós chamamos comunismo ao movimento real que leva à extinção do «actual» estado de coisas. As características desse movimento decorrem das condições então existentes.

Sérgio Godinho: Aaaaiii só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação

I

Estas, em estilo bíblico, algumas das pedras em que ponho os pés para caminhar por sobre as águas. Devo-as à minha corrente, a UDP-AP. A conversa já vai tão adiantada que quase me estranhei estar a escrever esta sigla no texto…

As correntes existem e só elas poderão decidir deixar de existir. Pretender o contrário, é inócuo e é anti-democrático.

O nosso partido, o Bloco, analisa a sociedade em movimento e, a partir dessa análise procura as respostas políticas necessárias à defesa dos interesses e à satisfação das reivindicações da base social de que disputa o apoio: a grande maioria de cidadãos e cidadãs que se batem pela economia ao serviço dos trabalhadores e pela democracia plena, como requisitos necessários para usufruir da liberdade total indispensável à realização plena da sua essência humana!

O trabalho do Bloco poderia resumir-se nesta ideia: mostrar aos trabalhadores o bem fundamentado das suas reivindicações e da sua luta.

Aqui cabe todo um programa socialista. Ou seja, sob o domínio do capital, há que juntar a teoria revolucionária que desmascara a ideologia burguesa e revela os fundamentos da exploração, à prática da luta concreta.

A grande questão que se coloca é: qual o método de análise que nos garante que não estamos a escrever no molhado nem a pregar aos peixes e que, pelo contrário, encontramos eco, mais forte ou menos forte, mais demorado ou mais rápido – tudo depende da distância!- no movimento social e apoio entre os trabalhadores e as classes interessadas no combate pela mudança?

Outra questão imediatamente derivada: que mudança? Das moscas ou acabar mesmo com a trampa? E para acabar mesmo com a trampa como fazê-lo além da manifestação da vontade e da confiança no método?

No esquerda grande, nas actuais condições, cabem os que querem criar as condições políticas, económicas, sociais, culturais e de relacionamento internacional para que os trabalhadores assalariados, o proletariado, enfim, possam tomar em mãos a sua emancipação numa ruptura com o poder do capital.

À esquerda grande cabe propor que tal, partindo das condições actuais, ganha estrategicamente com a ideia de um Estado de Direito socialista desde que este facilite e não obstaculize a luta revolucionária dos trabalhadores.

O Bloco ou serve para isso ou para coisa nenhuma.

Não interessa à luta difícil que travamos enredarmo-nos em beatices de «valores e princípios» que andam para aí a atirar-nos como aval do ser de esquerda. Matam e esfolam para rapar o tacho das migalhas que lá deixam os seus patrões de estatuto (de jure) ou de facto, mas reivindicam-se dos valores!

Valores que foram historicamente forçados a estatuir, a nomear e proclamar pela luta dos trabalhadores, sempre desapropriados, sempre espezinhados perante a sua complacência e perante o seu voto de castidade.

A situação actual não é fruto de malfeitorias – embora seja cómodo e adequado usar tal terminologia na propaganda – mas do fluir histórico da sociedade capitalista no qual os trabalhadores também participaram, a perder; mas são parte da resultante do embate de classes.

A esquerda como estado de alma é uma treta.

A esquerda é política ou não é. E não há outra hipótese senão confrontar o capital e o imperialismo (hoje comandado pela finança e pela NATO) e que juntar-se, sem tergiversações, nem truques, nem hesitações aos que sofrem brutalmente as consequências do seu domínio: aos povos em luta, aos trabalhadores em luta.

II

O Bloco (foi para isso que todos concordaram em formá-lo) tem como missão (um termo um bocado militar) ajudar à ocorrência de condições para a criação da esquerda grande.

A esquerda que crie as condições para os trabalhadores e trabalhadoras assalariados se unirem e terem acesso ao conhecimento que, na luta, permita a concretização da sua utopia: uma sociedade dos trabalhadores para os trabalhadores. Tal significa que o ser humano possa libertar-se da alienação das ideologias que o impedem de entender a realidade e a profundidade da sua exploração e de como lhe pôr cobro.

E isso exige para já a luta contra o capitalismo. Sem transigências com os seus agentes assumidos ou não. Com a inteligência da táctica: agir de forma a respeitar a consciência, alienada ou não (?), dos agentes da libertação dos trabalhadores: os próprios trabalhadores.

O instrumento fundamental para isso é a proposta política. A proposta política capaz de responder e acompanhar a acção espontânea dos trabalhadores, acrescentando-lhe racionalidade teórica e empírica, sempre sujeita à prova da praxis, ou seja, à falsificação (estamos no campo da ciência e não da ideologia!) e donde nasce o terreno para a unidade.

O que significa também a capacidade crítica para cortar as amarras materiais (institucionais, de controlo partidário ou sindical ou outro) e subjectivas (a alienação própria da sociedade capitalista, a cultura da classe dominante, a ideologia) que impeçam a expressão livre dessa acção.

Um partido revolucionário não teme a acção espontânea dos trabalhadores, sabe que é nela que reside a força que se tornará demolidora logo que inspirada no conhecimento dos mecanismos da sua condição.

Logo surgirão então os politólogos e os filosofantes (aqueles filósofos que, ainda hoje! se limitam a tentar interpretar o mundo, perdendo a oportunidade para rasgar novas interpretações e propostas para a transformação social – dois irmãos que são o exemplo das duas atitudes: o falecido Fernando Gil, empenhado em justificar a guerra imperialista, e o, felizmente bem vivo entre nós, José Gil).

E aqui surge também a nossa resposta. A do método. Como distinguir, em última instância, uma análise da outra, uma proposta da outra a não ser pelos resultados? Mas, resultados obtidos, não se pode voltar atrás. Em política não há experimentação, na sociedade não se criam condições laboratoriais (embora haja quem o tenha tentado!).

Só o capital, senhor do poder, pode ensaiar tudo e o seu contrário que sai sempre a ganhar, pois conta com uma massa capaz de aguentar todas as suas tropelias: os trabalhadores, livres de venderem a sua força de trabalho mas presos pela necessidade de o fazerem; e ao fazerem-no estão sempre a assegurar a engorda dos já bem cevados.

Trata-se pois, historicamente, de uma unidade de contrários que só pode terminar pela brutalização absoluta do poder através, nos dias de hoje, da mais cândida das democracias, ou pela transformação social através da mudança de poder. O poder para os que, de facto, tudo podem: criar, gerar(proletas!), produzir,distribuir, ajudar,solidarizar, transformar - os que trabalham.

Hoje essa luta está aparentemente facilitada quando o poder do capital nos aparece, sem disfarce, materialmente ligado à pura especulação e esbulho que geram mais e mais proletarização, precariedade, exclusão e miséria.

Mas ela está muito dificultada pela actual reforçada oferta na praça, dos ex-executores da política da finança. O cinismo e a hipocrisia, valores produtivos do capital financeiro, dos valerosos defensores dos princípios que nunca praticaram nem praticarão, estão aí a afirmar a sua alma de esquerda.

E, quando é preciso unidade muito ampla, há quem possa ser levado a procurá-la onde é mais fácil: com quem já está afirmado, instalado no sistema, já arrasta consigo uma ampla base social que, aliás jurámos disputar.

É aqui que devemos apelar ao rigor do método e, antes disso, à escolha do método. Ou seja ao separar das águas.

O método retórico, filosofante, dos valores da esquerda que se mostra impotente para defender radicalmente aqueles que a obrigaram a aceitar e depois a proclamar esses mesmos valores; ou o método que usa o estudo científico das contradições da sociedade, da sua evolução histórica, que procura os interesses por detrás das intenções, que vê nas movimentações sociais e na acção espontânea dos trabalhadores a dinâmica da transformação necessária, e é aí que quer agir com o que tem para dar: a proposta política, os sinais para a organização necessária, o conhecimento teórica das bases da sua exploração e das razões objectivas da sua luta.

A unidade ampla necessária de nada servirá se se abrir mão das conclusões a que chegámos: a luta pela transformação da sociedade é uma luta contra o capitalismo, enquanto tal, ou seja enquanto predador e chacinador, e não enquanto abstracção; contra o imperialismo, enquanto tal, ou seja enquanto agressor, genocida, massacrador, que tem como instrumento central a guerra infinita contra os povos, e não enquanto abstracção.

E é uma luta que diz respeito fundamentalmente aos trabalhadores, o proletariado moderno, e aos povos e na qual a esquerda grande para o ser deve ter já, antes de o ser, a sua posição, o seu lugar marcado.

A esquerda grande, acho eu, não é o Bloco maior. É algo diferente. É algo que conta com o Bloco mas que pode muito bem gerar ou surgir da geração de novas formas organizacionais. Ou das mesmas… Uma coisa é certa: a esquerda grande não o será se passar a ser um estado de alma em vez de uma fúria anti-capitalista associada a uma soberana tranquilidade na afirmação das suas propostas.

III

O grande passo que todos querem e que no fundo muitos temem, agora, é de facto o fim da articulação inter-correntes. A militância bloquista na sua universalidade e no seu esplendor.

Os partidos estão sempre em construção. Doutra forma estiolam, morrem ou mumificam, o que é uma morte a fingir que não foi.

Mas temos que polemizar, entre nós, com as hipóteses que, reivindicando-se da necessidade de a esquerda ser corajosa e anunciando que a esquerda nunca desiste, manifestam contraditoriamente aquilo a que Walter Benjamim chamou a esquerda nostálgica ou estão entregues a «tristes paixões» (Spinoza).

Para o Bloco apresentar uma proposta corajosa e atirada para a frente, a ameaça de saída no euro, se necessário, no processo de auditoria,reestruturação e decorrente incumprimento da dívida, propõem um bloco social para o qual não há que temer alianças, pelo contrário, devemos ter em conta os superiores interesses de Portugal, logo dos trabalhadores e, para tal, encontrarmos os parceiros sociais e políticos dispostos a combater o capital financeiro com o reforço do investimento produtivo, ou seja uma aliança com a burguesia industrial contra a burguesia rentista e especuladora.

A questão põe-se: vamos procurar, na Europa também, a aliança com os Governos em «estado de sítio» financeiro como o nosso, alienando a tão almejada unidade dos trabalhadores (e das esquerdas capazes disso) por uma Europa social, democrática e pacífica?

Entretanto entrevejo uma dificuldade para a proposta a que me tenho vindo a referir (João Rodrigues et al.): um dos aliados manifestos, Van Zeller, ex-chefe dos patrões da indústria, e de candeias às avessas com os seus amigos da finança, já apelou às manifestações do povo a que chamou de idolente, pasmado, ou coisa parecida por não tomar conta das ruas. O que, até certo ponto, vai contra cautelas sobre o papel da rua, expressas pela nossa esquerda nostálgica.

Claro que um bloco social como o proposto, ainda por mais na actual situação do movimento social, teria o comando esclarecido da burguesia trabalhadora e investidora na economia e da intelectualidade marxista. O proletariado seria então beneficiado nas suas condições de exploração, sentir-se-ia ainda mais devedor de quem lhe quer bem, e mais uma vez disposto a cumprir o seu papel determinante de capital variável.

A alternativa posta à discussão pode salvar o país mas enterra os trabalhadores, na minha opinião.

E o Bloco finalmente encontraria uma forma menos ostensiva de governar com os partidos do centro, que também encontrariam uma forma de se esquivarem eleitoralmente, que não socialmente nem politicamente, do anátema troikista-financeiro.

A pergunta aqui fica: e o movimento social pela transformação onde ficaria? Nas covas! E o Bloco? Ficaria na esquerda/estado de alma e deixaria de ter o papel para que nasceu e é necessário.

IV

É tempo de a esquerda não só entender (sabe-o muito bem) mas agir em conformidade com o facto de o Estado, mesmo com apoio social amplo e simpatia do proletariado, como acontece na Venezuela, por exemplo, será sempre um obstáculo à emancipação dos trabalhadores.

Mas o caminho faz-se caminhando, como dizia o grande poeta sevilhano, António Machado* e de nada serve olhar para trás. Lá só veremos as nossas próprias pegadas.

O «nosso» Estado de Direito socialista é, para já, a proposta mais avançada e mais consentânea com a actual situação europeia. A sua base social surgirá na complexa e difícil luta anti-capitalista que travamos. Não vale duvidar da capacidade dos trabalhadores o imporem. Nem de o ultrapassarem.

Em maio de 68 a pujança do movimento estudantil que arrastou o movimento operário, conseguiu ganhar a esmagadora maioria dos franceses gozando o sossego de uma social-democracia já a desmascarar-se com a guerra da Argélia, para o apoio a uma luta revolucionária sem reticências e sem os tiques organizativos e ideológicos do costume.

Foi liquidada por De Gaulle com a ameaça das tropas do torcionário Massu e, pior ainda, com a mercância eleitoral. Mas quem transformou os leões de novo em cordeiros e os preparou para a degola foi a esquerda.

Daí que a esquerda deva abster-se de grandes planos a impor a quem possa servir-lhe de suporte no poder. A esquerda ou é a possibilidade de assegurar resposta racional e teórica à luta dos trabalhadores contra o capitalismo, ou é um dos instrumentos do capitalismo

O capitalismo, gerador das suas próprias crises, sai sempre delas inventando um oportuno avatar que satisfaça no imediato (enfim, faz-se o que se pode) a sua inesgotável massa de manobra, o proletariado. Enquanto este não lhe retirar essa possibilidade, aceitará a fatalidade da sua reprodução ad infinitume de nada lhe valerá a esperança de se transformar em capitalista ou investidor; quanto muito poderá ganhar o euromilhões.

Uma lapalissada, entre outras certamente, para terminar : o proletariado só acabará, e com isso a sua vida limitada quando não desesperada, quando acabar e capitalismo.

O Bloco e ainda mais a esquerda grande devem trabalhar para que possa aproveitar-se a mínima oportunidade.

Mário Tomé


* Caminante Caminante, son tus huellas/el camino y nada más; /Caminante, no hay camino,

se hace camino al andar. /Al andar se hace el camino, /y al volver la vista atrás

se ve la senda que nunca /se ha de volver a pisar. /Caminante no hay camino

sino estelas en la mar