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DOC | O que vai acontecer aquí?

“O que vai acontecer aqui?” A especulação e luta pela habitação em documentário

Num documentário essencial para conhecer os problemas de habitação na zona de Lisboa, a Left Hand Rotation, em colaboração com a Stop Despejos e a Habita, trazem-nos a imagem e a voz de quem perde com a gentrificação e turistificação. Moradores e ativistas mostram como desafiam a mercantilização do direito à habitação. Por Carlos Carujo.

“O que vai acontecer aqui?” multiplica-se. É isto que se pode ler no cartaz informativo da Câmara Municipal de Lisboa no qual se dão as informações sobre as obras que estão a decorrer na cidade. E a resposta é óbvia. O que está a acontecer aí é a entrada da lei do capital financeiro pela capital dentro, em detrimento do direito à habitação.

O documentário que a Left Hand Rotation realizou em conjunto com a Stop Despejos e a Habita não perde portanto tempo a responder. Se começa com imagens dessa Lisboa turística que é uma moda, logo desde início estas alternam com outras, genuínas de uma forma que não vende, genuínas de uma forma que é ameaçada pelo que na cidade vende e por quem está na cidade para a vender sem respeito pelo direito a morar. Vê-se a pobreza que é afastada do olhar consumidor. Entra-se pela casa dentro da pobreza que tem de se expulsar de habitações que passaram a ser, sobretudo, um ativo financeiro.

“O que vai acontecer aqui?” parece estar por todo o lado na cidade. Mas o que vai acontecer aqui é também resistência. Por isso, a voz de ativistas pelo direito à habitação entrecruza-se com a de quem fala na primeira pessoa nos problemas que vive e que temos assim a oportunidade de conhecer.

Rita Silva, da Habita, Luís Mendes, da Associação Viver em Lisboa e Maria João Costa, também da Habita, vão partilhando o ecrã com protagonistas como as moradoras da rua dos Lagares e do Prédio Santos Lima em risco de despejo, do Bairro do Condado e do 6 de Maio.

Os ativistas dos movimentos sociais vão enquadrando as lutas a que assistimos intercaladas a cada momento com o turismo, as obras, os sinais de venda. Culpam o capitalismo financeiro, lembram o papel da lei dos despejos que os “liberalizou” e os tornou “administrativos” e dos mecanismos que agilizaram o investimento estrangeiro “que não reproduz bem-estar” como os vistos gold e o programa para residentes não habituais.

O prédio Santos Lima é um exemplo destas dinâmicas que passaram a morar na cidade tornando cada vez mais difícil quem tem menos rendimentos morar nela. Aí se comprou um prédio com 17 famílias por dois milhões para na semana seguinte o colocar à venda por sete, se destruíram as portas das casas vazias para fazer pressão sobre quem lá permanece. Rita Silva considera-o “a própria definição de especulação” e um símbolo das transições ocorridas no capitalismo: este pertencia a uma empresa com atividade industrial no Porto de Lisboa e as casas serviam para albergar os seus trabalhadores. Por detrás de tudo, “havia um rosto” e a relação de exploração era no trabalho. Agora a exploração está também “no sítio onde as pessoas vivem”. E o senhorio já não tem rosto.

Também por isso, a Stone Capital é outro exemplo apresentado. Este fundo de investimento tem mais de 40 projetos aprovados pela Câmara de Lisboa. Ocasião para os ativistas desmontarem o programa de “rendas acessíveis” que Maria João Costa diz ser um nome “atraente e enganoso”. No caso da Stone Capital o seu projeto de “rendas acessíveis” consistia em seis apartamentos na Rua dos Lagares: T1 a 450 euros e T2 até 850.” Um programa que não funciona porque dá isenções fiscais quando a expetativa do proprietário é lucrar bem mais.

Luís Mendes critica também as isenções fiscais dadas aos fundos de investimento imobiliário para uma reabilitação urbana que acaba dirigida a “um grupo muito seleto de privilegiados”. E a cidade paga no seu conjunto quando a “hegemonia do turismo” reduz número de habitações disponíveis, aumentando o seu preço, nomeadamente no centro onde as rendas eram baixas. Onde havia diversidade passou a haver “monofuncionalidade” turística. Rita Silva acrescenta que isso faz que a a economia tenha “pouco controlo sobre si própria” e fique “à mercê dos fluxos e dos mercados internacionais”.

O documentário da Left Hand Rotation preocupa-se ainda com as discriminações que se somam e potenciam problemas habitacionais. A racial e a de género por exemplo. Sara Fernandes da Assembleia Feminista de Lisboa explica como as mulheres são “despossuídas de um lugar para viver que seja seguro” e que “o problema da violência doméstica não pode ser resolvido sem direito a ter um lar”.

Ocupando socialmente muitas vezes o papel de cuidadoras, fazendo o trabalho reprodutivo, não reconhecido, não pago, trabalho reprodutivo, tem mais dificuldades no acesso ao trabalho e mais dificuldades no acesso à habitação. Como a Nazaré, que explica como foi despejada de casa sem ter uma alternativa.

Cátia Silva soma a dimensão racial ao problema. Um relato impressionante dos despejos na sua humilhação que pretendem impor, na insensibilidade que ostentam, na ansiedade de quem vê avançar o bulldozer não sabendo se é a sua casa a próxima, na dignidade de quem resiste. Acompanhado da violência das imagens da destruição.

Traz-nos a história do Bairro 6 de Maio, “rico e diverso”, que passou de três mil pessoas para trinta pessoas. Estas destruições de casas consideradas ilegais, sem direito a alternativa, nascem das insuficiências dos programas de realojamento anteriores que fizeram com que muitos tivessem ficado de fora mas também da ganância dos fundos imobiliários que passaram a ser donos dos terrenos onde bairros como este estavam construídos e que entretanto valorizaram, explica Maria João Costa.

Cátia Silva fala em racismo, em desrespeito e discriminação dos pobres. O mesmo conta Nilza Brown sobre as suas tentativas de alugar casa que chocam com a recusa dos senhorios devido à sua cor da pele. Ao mesmo tempo que enfrentava uma ameaça de despejo.

Entra em cena a questão da habitação social. Maria João Costa diz que Portugal tem uma das mais minúsculas taxas de habitação social, 2%, e as casas que há são “muitíssimo mal geridas”. Existem em Lisboa 2637 casas vazias que seriam supostamente de habitação social.

Algumas destas casas acabam por ser ocupadas. Bruna Santos conta que estava a viver num carro e que ocupou uma casa vazia da Câmara. Não foi a única. O movimento de ocupações de casas vazias por carencia está longe de ser um fenómeno marginal em Lisboa. E Rita Silva vê nele uma forma legítima de desobediência à injustiça, lembrando que foi a resistência que sempre promoveu as mudanças sociais no sentido de maior justiça social. Para resistir e recusar o despejo, é preciso “organizar uma solidariedade forte”, pensa. E pela necessidade de articular as lutas pelo direito à habitação e de “criar um polo do lado das pessoas” contra quem tem muito poder que este documentário termina. Nele aconteceu consciencialização, reflexão e apelo à solidariedade imprescindível para concretizar um direito básico.