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O papel do mercado no desenvolvimento de vacinas: Fonte de avanços ou força de bloqueios?

Parto para esta reflexão com base em dois exemplos muito concretos: o das vacinas de mRNA contra a COVID-19, que todos conhecemos, e o de uma vacina contra a malária, o principal foco de vários anos da minha investigação científica. Por Miguel Prudêncio, investigador principal do Instituto de Medicina molecular

As vacinas são uma das maiores conquistas da história da ciência e porventura aquela que mais vidas salvou ao longo da história da humanidade. No entanto, o desenvolvimento de uma vacina, desde a sua concepção inicial até à sua disponibilização é um processo naturalmente complexo e inevitavelmente dispendioso. Tanto mais complexo quanto maior for o desafio científico colocado pelo organismo infeccioso contra o qual pretendemos vacinar. E tanto mais dispendioso quanto mais exigentes são os requisitos necessários à validação da segurança e eficácia de uma. Longe vão os tempos em que Edward Jenner, criador da vacina contra a varíola, a primeira que o mundo conheceu, mostrou a sua eficácia inoculando-a numa criança de nove anos e expondo-a de seguida ao vírus que causava esta doença. A demonstração de que a criança estava protegida contra a varíola foi um feito extraordinário, mas felizmente impossível de replicar em condições semelhantes nos dias de hoje. Em pleno Séc. XXI, os ensaios clínicos de vacinas, como os de quaisquer fármacos, estão sujeitos a regras rigorosas que visam garantir a segurança dos participantes nestes ensaios e o cumprimento de todas as normas éticas a eles associados. E isto acarreta, inevitavelmente, enormes custos para todo este processo, que é tão desejável quanto é incontornável. É perante esta realidade que uma reflexão sobre o papel do Mercado no desenvolvimento de vacinas pode e deve ser feita, sem preconceitos, e sem perder de vista o principal objetivo: proporcionar às pessoas vacinas que são seguras, eficazes, e salvam vidas.

Parto para esta reflexão com base em dois exemplos muito concretos: o das vacinas de mRNA contra a COVID-19, que todos conhecemos, e o de uma vacina contra a malária, o principal foco de vários anos da minha investigação científica. Duas doenças muito distintas, quer na sua etiologia, quer na sua distribuição geográfica. Duas doenças para as quais a história do desenvolvimento de uma vacina eficaz é muito diferente entre si. Mas duas doenças que talvez nos ajudem a abordar o tema deste artigo, cujo propósito, mais do que dar respostas definitivas à questão formulada no seu título, é deixar algumas pistas de reflexão sobre a qual cada um de nós poderá construir a sua própria opinião.

O caso da COVID-19

Ao contrário do que muitos porventura pensam, a tecnologia subjacente às vacinas de mRNA contra a COVID-19 não começou a ser desenvolvida no final de 2019, quando o vírus SARS-CoV-2 surgiu. Pelo contrário, ela assenta em décadas de investigação científica, maioritariamente levada a cabo com fundos públicos, que permitiram a rápida utilização desse conhecimento acumulado para o combate à pandemia então emergente. Empresas como a BioNTech ou a Moderna, já então a explorar a tecnologia de mRNA para o desenvolvimento de outras vacinas, rapidamente redirecionaram os seus esforços para a produção de vacinas contra a COVID-19. Os ensaios a que estas foram sujeitas revelaram tratar-se de vacinas extremamente eficazes e seguras, e o processo de avaliação por parte das autoridades reguladoras decorreu de forma invulgarmente célere sem, no entanto, comprometer qualquer das etapas de avaliação a que qualquer novo fármaco tem de ser sujeito. O resultado foi, em menos de um ano, estarem disponíveis vacinas que vieram alterar por completo a face da pandemia e salvar milhões de vidas. Teria isto sido possível sem o empenho das empresas farmacêuticas que lideraram este processo? E teria esse empenho existido não fora o incentivo do Mercado à disponibilização e comercialização destas vacinas? A resposta a ambas estas perguntas é, muito provavelmente, não. A verdade, quer queiramos quer não, é que sem a pressão do Mercado teria sido virtualmente impossível atingir aquilo que se atingiu do ponto de vista científico e tecnológico num espaço de tempo tão curto. No entanto, não nos podemos esquecer de que aquilo que empresas como a BioNTech/Pfizer e a Moderna lograram atingir só foi possível graças ao financiamento público de que beneficiaram. E não nos esqueçamos também das desigualdades gritantes na distribuição das vacinas a nível planetário, consequência mais do que evidente das disparidades económicas que atravessam o globo. Se é certo que o Mercado funcionou como um motor que permitiu acelerar o desenvolvimento destas vacinas, não é menos certo que esse mesmo Mercado condicionou o acesso às mesmas a quem não dispunha da capacidade económica para as adquirir em pé de igualdade com as regiões mais favorecidas do planeta.

O caso da malária

A malária é uma das doenças mais antigas que se conhecem, remontando às primeiras descrições daquilo que se presume ser esta doença há mais de 2000 anos. Desde a identificação do seu agente causador, o parasita Plasmodium, até aos dias de hoje, têm sido muitas as tentativas de o combater. As campanhas de erradicação da malária levadas a cabo pela Organização Mundial de Saúde (OMS) nos anos 1950 e 1960 lograram eliminar este parasita de várias áreas do planeta, incluindo a América do Norte, a Europa e algumas regiões Asiáticas. No entanto, a malária subsistiu em quase metade do globo, sobretudo nas regiões mais desfavorecidas, com particular impacto na África sub-Saariana, onde continua a ser responsável por centenas de milhares de mortes de crianças todos os anos. Ao longo de décadas, têm sido múltiplas as tentativas de desenvolver uma vacina eficaz contra a malária. No entanto, o desafio científico colocado pelos parasitas Plasmodium, organismos infinitamente mais complexos que, por exemplo, os vírus, aliado a dificuldades na obtenção de financiamento para a pesquisa nesta área, têm condicionado os resultados obtidos. No início do Séc. XXI, o combate à malária e a disponibilidade de verbas para a investigação desta doença ganharam novo fôlego com a entrada em cena da Fundação Bill & Melinda Gates, que elegeu a sua erradicação como uma das suas prioridades. A minha própria investigação neste domínio apenas foi possível graças ao apoio que recebeu desta Fundação. Diversos outros laboratórios e empresas beneficiaram destes apoios e, no dia 6 de outubro de 2021, a OMS veio recomendar a primeira vacina de sempre contra a malária, designada RTS,S.

Fruto de mais de três décadas de pesquisa, liderada pela farmacêutica GSK, a RTS,S é um marco no combate à malária, mas os seus cerca de 30% de eficácia ficam muito aquém do ideal, sendo necessário e urgente desenvolver vacinas mais eficazes contra esta doença. É, pois, legítimo perguntarmo-nos se este progresso não estará significativamente condicionado pelo desinteresse na malária por parte do Mercado, que a entende como economicamente pouco atrativa e, portanto, pouco merecedora de esforço e investimento. Tal como é legítimo interrogarmo-nos sobre onde estaríamos no desenvolvimento de uma vacina realmente eficaz contra a malária se a capacidade económica dos seus principais destinatários permitisse às empresas farmacêuticas aspirar àquilo que o Mercado mais preza: o lucro. No entanto, e ao mesmo tempo, não nos podemos esquecer de que foi uma empresa farmacêutica que desenvolveu a única vacina até agora disponível para a malária, tal como não nos podemos esquecer do papel da Fundação Gates e do seu fundador, ironicamente ele próprio um produto do Mercado, em todo este processo.

Bem comum e lucros amorais

Perante este conjunto de factos, que conclusões podemos, então, tirar acerca do papel do Mercado no desenvolvimento de vacinas? Será ele uma fonte de avanço científico e tecnológico que permite desenvolver vacinas em tempo recorde para combater uma pandemia emergente? Ou será uma força de bloqueio de desenvolvimento de vacinas para doenças economicamente pouco atrativas? E será que é sempre e apenas uma destas duas coisas? Na minha opinião, apesar de atraente, uma perspetiva maniqueísta sobre este assunto, que reduza o Mercado à fonte de todos os Males ou, pelo contrário, à grande força motriz do Bem, peca por simplista e, sobretudo, irrealista. Naquilo que eu considero um mundo ideal, o bem de todos não deveria nem poderia estar refém da perspetiva de lucros amorais de alguns. Nesse mundo, os dinheiros públicos seriam canalizados para o bem-estar das pessoas, para o conhecimento e para o desenvolvimento científico, ao invés de contribuírem para a especulação financeira e de alimentarem orçamentos militares verdadeiramente repugnantes. No entanto, será legítimo atrasar o encontrar de soluções para os problemas de saúde das populações enquanto esse mundo permanecer uma miragem? Será aceitável protelar o desenvolvimento de vacinas para doenças que podem ser prevenidas apenas como forma de combater os aspetos mais perversos do Mercado? No mundo real, isso é sequer possível? Creio que, felizmente para alguns, e infelizmente para todos os restantes, o mundo em que vivemos não nos permite aspirar a resolver os grandes desafios da saúde global sem a intervenção do Mercado. Mas nada nos impede de pugnar por mecanismos justos de regulação desse Mercado, de apelar à consciência social dos seus agentes e, sobretudo, de aspirar a um mundo em que o bem-estar coletivo seja um verdadeiro desígnio global.

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Esquerda Saúde 2

Revista Esquerda Saúde nº2

31 de Maio 2022

A edição de junho de 2022 já está disponível online e traz em destaque um dossier sobre investigação em saúde. Leia aqui a revista em formato pdf.

Editorial: Já está na altura de dignificar o trabalho médico?

31 de Maio 2022

Horas extra, precariedade, perda de salário e uma pandemia. Numa profissão que defende a humanização dos cuidados de saúde, não é compreensível que quem presta cuidados o faça sob condições desumanas. Por Tânia Russo, médica no Hospital Amadora-Sintra, dirigente sindical e deputada municipal em Sintra

EUA: O triunfo do conservadorismo contra as decisões das mulheres

31 de Maio 2022

O país encontra-se dividido entre os estados que permitem livremente o acesso ao aborto nas condições da lei (até às 24 semanas de gestação) aceitando mesmo mulheres de outros estados, e os que reduzem drasticamente as condições da lei, com sistemáticas represálias em relação aos profissionais de saúde que colaboram na prática de aborto.  Por Ana Campos, médica obstetra

 

“Das pessoas trans que recorreram ao SNS, mais de metade sofreu discriminação”

31 de Maio 2022

Entrevista a Jo Rodrigues, presidente da Anémona, uma associação de profissionais de saúde e seus aliados criada para aproximar os serviços de saúde das pessoas transgénero e não-binárias e combater a transfobia.

 

Hayek, Pinochet e os social-liberais entram num bar…

31 de Maio 2022

No Chile, a ‘reforma’ liberal é cara e ineficiente. Custa 7% do salário aos utentes, canaliza 50% dos recursos para 20% da população e os ganhos em saúde são alcançados pela resposta pública e não pela privada. Por Moisés Ferreira, dirigente do Bloco de Esquerda

O negócio vai bem (a Saúde nem por isso)

31 de Maio 2022

A faturação e os lucros dos grupos privados da saúde não pára de aumentar. Estes lucros crescentes não impedem que estas empresas sejam conhecidas por más práticas laborais. Por Maria Ribeiro, enfermeira emigrada na Bélgica

 

Inovação em Saúde: Importância da investigação clínica e de translação

31 de Maio 2022

A investigação clínica e de translação visa melhorar os cuidados de saúde e os prognósticos dos pacientes. É essencial para a melhoria do bem-estar das populações e deve estar ao alcance de todos. Por Maria João Carvalho, Investigadora do Instituto de Biomedicina, Departamento de Ciências Médicas da Universidade de Aveiro.

 

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Quem deve financiar a ciência?

31 de Maio 2022

Sem financiamento público, a investigação básica não fica assegurada. Sendo esta  investigação fundamental para o avanço do conhecimento, mesmo a investigação mais  aplicada fica em sérios riscos a longo-prazo sem um sério investimento a montante.  Por Ana Isabel Silva, investigadora em Ciências da Saúde no i3S.

Eutanásia: Uma lei contra a prepotência

31 de Maio 2022

As iniciativas dos partidos proponentes da despenalização, já entregues ou anunciadas, mostram que a Assembleia da República manterá o registo de responsabilidade e de tolerância que imprimiu a todo o processo anterior. Por José Manuel Pureza, dirigente do Bloco de Esquerda.

Cuidados paliativos: Direitos humanos em fim de vida

31 de Maio 2022

É prioritário investir na formação diferenciada em cuidados paliativos dos profissionais de saúde e criar novas unidades de apoio ao internamento paliativo na comunidade que permitam o controlo de sintomas e prevenção de complicações, aliviando o sofrimento, permitindo assim cuidados personalizados e de proximidade. Por Gisela Almeida, Enfermeira Especialista, Instituto Português de Oncologia, Coimbra

 

Acolher e cuidar dos refugiados

31 de Maio 2022

Embora a lei determine que o refugiado tem direito a cuidados de saúde no SNS, quem está nos serviços de saúde conhece bem que nem sempre são dadas as respostas céleres e adequadas aos refugiados que a eles recorrem. Por Sónia Pinto, enfermeira de família.

Açores: Para os profissionais de saúde, uma salva de… precariedade!

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É verdade que o reforço de meios humanos foi necessário para o combate à pandemia, mas também o é para o normal funcionamento e recuperação de toda a atividade assistencial. Por Jéssica Pacheco, enfermeira, Açores.

Transformar o SNS, a agenda de um encontro à esquerda

31 de Maio 2022

Realizou-se a 21 de Maio o Encontro Nacional Sobre Saúde do Bloco de Esquerda, em Lisboa. Foram vários os contributos para o debate e destacamos aqui algumas breves passagens de cada um.

Revisão da literatura – a legalização da canábis aumenta o consumo entre os jovens?

31 de Maio 2022

Uruguai e Canadá legalizaram a canábis recretiva em 2013 e 2018, respetivamente. Dois estudos recentes sobre o consumo recreativo oferecem-nos uma visão sobre o que pode ser a realidade após a legalização. Por Bruno Maia, médico.