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A votar resistimos

Votar nestas eleições europeias não é realmente a mera reativação dum direito: é o que sinto ser a afirmação de quem tanto lutou e tanto quer continuar a lutar, de quem sabe que tem passado mas não abre mão de exigir um futuro.

De resistências nos fizemos. Uma boa parte da geração a quem o 25 de Abril apanhou na transição para a idade adulta, forjou-se na resistência à indiferença para com a pobreza e o estado de calamidade a que o salazarismo e o marcelismo tinham conduzido o país. A guerra colonial revoltava-nos. O analfabetismo e o sistema de ensino ora nos envergonhavam ora nos faziam imaginar formas de intervenção para os ultrapassar. Curiosamente, acho que nunca ouvi tanta poesia como então – poesia era então sinónimo dessa resistência - que nunca como então aprendi tanto de política, de realidades sociais que ignorava. Íamos a encontros quase clandestinos, à vezes bem longe, para debater ideias, para ouvir poemas, para ver cinema. O mundo abria-se aos nossos olhos e nós não gostávamos do que víamos. Apostávamos que iríamos mudar esse mundo.

Não me anima nenhum tipo de saudosismo, mas não abdico de reivindicar e de fazer recordar o quanto mudamos o país por muito pequena que fosse a escala da nossa intervenção e ação: nos movimentos estudantis, a editar textos de apoio com conteúdos alternativos ao ensino do regime, na ligação a trabalhadores em luta, a ler, a ler muito e a fazer circular os livros proibidos, no apoio a grevistas, a «pichar» paredes com slogans anticoloniais e antifascistas, a ensinar a ler, a cantar as canções oposicionistas que nos uniam, a manifestar-nos com as polícias sempre no encalço.

Ao ver o nosso país – e outros, infelizmente – a retroceder a situações que só nos podem fazer recordar «a longa noite do fascismo», só temos uma alternativa: não nos deixarmos atar pela abjeção de um déjà-vu desmoralizante. 

Este tempo tornou-se um tempo em que reconhecemos capacidades e saberes que mantínhamos guardados nos cantinhos da memória. É o tempo certo para reinvestirmos essa vontade de mudar o mundo, não a partir das saudades desse outro tempo em que nos formamos para a cidadania e a política, mas a pegar no testemunho daqueles que, podendo ser bem mais novos, são acima de tudo os e as protagonistas principais das presentes agendas sociais e políticas (precariedade, questões LGBT e feministas, ambiente, direitos dos animais, direito à cidade e tantas outras). As lutas presentes requerem todas as gerações, é nas lutas presentes que desemboca a nossa ação juvenil, é nelas que ela ganha pleno sentido. Nenhum saudosismo, resistência sim, nesta outra realidade.

Isto a propósito de quê?

Lembrou-me, há dias, uma amiga querida, a frase que lança sempre que há eleições: «lembro-me do tempo em que não podíamos votar, em especial as mulheres não podiam votar, sabendo isto posso lá abrir mão desse direito!». Votar nestas eleições europeias não é realmente a mera reativação dum direito: é o que sinto ser a afirmação de quem tanto lutou e tanto quer continuar a lutar, de quem sabe que tem passado mas não abre mão de exigir um futuro.

Votar no Bloco, votar na Marisa, votar na Esquerda Europeia, votar no Tsipras, é resistir.

Somos presente, estaremos presentes. Vamos votar.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora em sociologia da cultura
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