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Vergonha

“Sete guardas” – não é um militar da GNR tresloucado, é uma parte importante dos militares da GNR de um concelho que estão acusados de crimes de tortura, abusos de poder, agressões e ameaças, que se filmaram a realizar esses crimes.

“É gás-pimenta, ó animal!”, disseram, depois de o terem forçado a inalar. Simularam uma banal fiscalização em que mediriam a taxa de alcoolemia, mas o motivo para abordar o homem era outro. Colocaram gás pimenta no tubo de plástico do alcoolímetro e forçaram-no a levar o tubo à boca. Ardência e irritação da pele, rápida inflamação das mucosas do nariz e da boca – são os efeitos conhecidos do gás-pimenta – e enquanto o homem desesperava e clamava por ajuda, os militares da GNR insultavam-no. Aquela não foi a primeira nem a última vez. Uma reportagem da CNN Portugal mostrou o ódio e a brutalidade, mas o vídeo e as fotos são o registo sádico que os próprios militares quiseram guardar para a posteridade.

“Ódio claramente dirigido às nacionalidades que tinham e apenas por tal facto”: é assim que o Ministério Público, no texto da acusação, descreve o sentimento dos militares da GNR. Há um nome mais simples e certeiro: xenofobia. A acusação pende sobre sete guardas da GNR de Vila Nova de Milfontes, concelho de Odemira. Percebemos agora: as imagens que há poucos meses chocaram o país pela desumanidade com que os imigrantes eram tratados naquele concelho, a falta de condições de vida e a miserável exploração, são apenas parte de uma realidade cruel e bárbara que cava fundo até nas forças de segurança.

“Todos os arguidos agiram com satisfação e desprezo pelos indivíduos”, acusa o Ministério Público. Seres sub-humanos, despidos de dignidade, “animais”, assim foram considerados os imigrantes pelos sete militares da GNR. Extirpados da sua condição humana, reduzidos a objetos de um entretenimento selvagem e ruim. Muitos perguntaram como era possível a realidade exposta em Odemira, em que os imigrantes eram tão maltratados - esta investigação ajuda a responder à parte da história que explica a conivência das autoridades. Aqueles sete bárbaros não são militares, são um gangue que espalhou o terror nas comunidades de imigrantes em Odemira.

Aqueles sete bárbaros não são militares, são um gangue que espalhou o terror nas comunidades de imigrantes em Odemira

“Por saberem que eram alvos fáceis”, perseguiam os imigrantes. A condição de estrangeiro, a falta de recursos económicos, a precariedade da forma de vida, por vezes a ilegalidade forçada ou os papéis que não estão em ordem – a insegurança e a fragilidade humana foram exploradas por estes predadores fardados. Num contexto em que já se conheciam outras práticas atrozes, como tráfico de seres humanos, patrões que ficam com os documentos e com as palavras-passes de acesso ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), esta região alentejana parece deixar longe o Estado de direito e regressar a tempos muito antigos.

“Manifesto uso excessivo de autoridade que o cargo de militar lhes confere”, continua o Ministério Público. Uma clara desonra da farda que usam e juraram servir. A autoridade com que o Estado reconhece às forças de segurança o monopólio da força legítima é uma responsabilidade não é um brinquedo ou um privilégio. É um enorme ato de confiança que tem de ser plenamente correspondido. “Quem quer respeito, dá-se ao respeito”, diz o povo e muito bem, e essa exigência é ainda maior nesta relação. É por isso que este caso deve ter tratamento exemplar.

É motivo para perguntar quão fundo cavam o racismo e a xenofobia nas forças de segurança

“Sete guardas” – não é um militar da GNR tresloucado, é uma parte importante dos militares da GNR de um concelho que estão acusados de crimes de tortura, abusos de poder, agressões e ameaças, que se filmaram a realizar esses crimes. É motivo para perguntar quão fundo cavam o racismo e a xenofobia nas forças de segurança. Ainda há dias, um grupo de peritos das Nações Unidas alertava para esse problema em Portugal. Os casos conhecidos de agressões e abusos de poder, alguns em julgamento, serão a ponta do icebergue? É esta a pergunta estrutural a que tem de se dar resposta, exigência que devia partir das chefias das próprias forças de segurança. Não tenho a opinião que todos os polícias ou todos os guardas são maus, mas é para defender os que são bons profissionais e prestam bom serviço ao país que não se pode transigir com quem não respeita a lei ou o Estado de direito.

Que a justiça seja rápida e certeira, sem encobrimentos nem contemplações, e que se avalie também a atuação das chefias. Juntemos a nossa indignação para exigir justiça e combater estas ações de ódio. Num país feito de famílias que abraçam o mundo inteiro, temos de garantir o respeito por quem acolhemos.

Artigo publicado no jornal “Público” a 17 de dezembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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