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A venda de ilusões como motor do capitalismo

Encarar os problemas da sociedade com uma perspetiva pragmática exige pensar em mudanças sociais que invertam a relação de forças que está na sua origem e não em falsas soluções que fortalecem esta relação de forças.

Acompanhar as notícias é difícil numa sociedade dominada pelo poder do capital. Ver um noticiário na TV, ler um jornal ou ouvir as notícias na rádio implica receber um misto de notícias, propaganda e publicidade, não sendo claro qual é qual. Certo é que para cada problema aparece uma solução mágica, que envolve um comportamento individual. Assim “aprendemos” que o desemprego se resolve com empreendedorismo, a pobreza se resolve com caridade e, de uma forma geral, a maioria dos nossos problemas resolvem-se comprando coisas.

O primeiro passo para este tipo de raciocínio do tipo “problema-solução” é a redução de um problema social complexo aos seus sintomas. Assim, por exemplo, os problemas inerentes ao congestionamento automóvel em zonas urbanas podem ser reduzidos ao problema dos escapes poluentes, para o qual a solução passa pela compra de automóveis elétricos. Ao aceitarmos esta lógica, desistimos de discutir os motivos para a dependência em relação ao transporte individual e como se relaciona com questões como o desenho das cidades e das redes de transportes públicos, o papel da publicidade na associação entre a posse de um automóvel e a entrada na vida adulta, a geopolítica do petróleo, e por aí em diante. Da mesma forma, não discutimos as limitações inerentes aos transportes elétricos, cujo fabrico é muito mais poluente e depende de minerais raros. Todas estas questões fundamentais são ignoradas a partir do momento em que o problema a solucionar se torna o “como reduzir a poluição provocada pelos automóveis sem questionar a automobilidade e sem mudar nada de essencial no sistema de transportes ou no complexo industrial automóvel”.

No seu “Shopping Our Way to Safety: How We Changed from Protecting the Environment to Protecting Ourselves”, o sociólogo Andrew Szasz argumenta que responder a problemas ambientais e sociais através do consumo não só é inadequado como até é perigoso. Se, por exemplo, reagimos à contaminação dos alimentos unicamente pela compra de produtos biológicos, desistimos de exercer o nosso poder cidadão na defesa de uma agricultura livre de tóxicos, para perseguir um sonho inalcançável de refúgio numa ilha de bens de consumo onde não entram tóxicos. Este tipo de comportamento não só isenta de responsabilidades quem lucra com a proliferação de venenos na agricultura como torna até mais aceitável a sua conduta, na medida em que, aparentemente, quem quiser (e tiver dinheiro para isso) pode sempre comprar o seu paraíso privado.

Em alguns casos, o raciocínio “problema-solução” disseminado pela publicidade e pela comunicação social pode assumir contornos caricatos. Recentemente, o sítio humorístico “UsVsThem” publicou um anúncio da empresa dos EUA ProTecht para cobertores antibalas, a serem usados por crianças nas escolas.1 Aproveitando o legítimo receio de pais em relação aos tiroteios nas escolas, a empresa apresenta como solução a compra de um produto que, supostamente, permitirá às crianças sobreviver quando um qualquer louco resolver entrar na sua escola aos tiros. A mensagem é clara: esqueçam o ativismo pelo controle das armas, neste país em que qualquer psicopata pode comprar armas de assalto, pelo que o melhor é comprarem um produto que vos defenda quando encontrarem um psicopata armado.

Não menos caricata é a apresentação de alimentos transgénicos como a “solução” para a subnutrição em regiões pobres do planeta. Numa mensagem publicitária mascarada de notícia, o Público anuncia que, em breve, bananas enriquecidas com vitamina A serão distribuídas em regiões onde a banana faz parte da alimentação local, prevenindo centenas de milhares de mortes e de casos de cegueira.2 A notícia não discute os perigos dos transgénicos para o ambiente e a saúde humana, nem questiona quem terá dinheiro para comprar estas bananas enriquecidas, desenvolvidas com o apoio de Bill Gates. Quem acreditar no conteúdo da notícia pensará que isto é uma ação de caridade e não um negócio milionário que irá aumentar o grau de controlo de gigantes como a Monsanto sobre o setor agroalimentar.3 Pior, seguindo o raciocínio implícito na notícia, não temos que perder tempo a discutir o papel da globalização capitalista na destruição de modos de produção e consumo de alimentos sustentáveis, no agravamento da fome mundial e no empobrecimento das comunidades rurais, já que da mesma globalização capitalista saem as soluções para os problemas que cria.

A pergunta “qual é a solução, então?” não tem uma resposta direta quando o problema foi mal definido. Encarar os problemas da sociedade com uma perspetiva pragmática exige pensar em mudanças sociais que invertam a relação de forças que está na sua origem e não em falsas soluções que fortalecem esta relação de forças. Independentemente de estarmos a pensar em produtos cujo consumo traz benefícios para o ambiente, como detergentes naturais ou alimentos biológicos, ou em produtos que apenas servem para aumentar os lucros das empresas, há uma máxima que não podemos esquecer: tentar comprar uma solução para os nossos problemas é uma perigosa distração, que apenas serve os interesses de quem criou os problemas.


3 Ver o dossier “Monsanto - Há mais de um século a contaminar o planeta”: http://www.esquerda.net/topics/dossier-224-monsanto-h%C3%A1-mais-de-um-s%C3%A9culo-contaminar-o-planeta

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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