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Vacinas há muitas
O processo negocial do governo grego com o bunker germânico constituiu a primeira e única, sublinhe-se, acção politicamente estruturada e democraticamente sustentada para travar a corrida da UE para o totalitarismo financeiro – o enlevadamente referido nervosismo dos mercados (ou o seu romantismo em dias de alargar os cordões à Bolsa) faz parte da idiossincrasia dessa entidade que representa o poder dos ricos que já foi de exploração e agora é cada vez mais de escravização dos trabalhadores – fazendo apelo a que, pelo menos, as regras da solidariedade e igualdade supostamente decorrentes dos tratados impostos aos povos europeus fossem respeitadas.
O processo negocial do governo grego com o bunker germânico constituiu a primeira e única, acção politicamente estruturada e democraticamente sustentada para travar a corrida da UE para o totalitarismo financeiro. O resultado terá surpreendido alguns, entristecido quase todos e terá tido como corolário a demonstração que a UE só pode ser reaccionária, colonialista e totalitária ou não será
O resultado terá surpreendido alguns, entristecido quase todos e terá tido como corolário a demonstração que a U.E. só pode ser reaccionária, colonialista e totalitária ou não será.
A humilhação da Grécia como soi dizer-se, embora só seja humilhado quem se deixa humilhar e os gregos não deixaram, foram derrotados com requintes de selvajaria, teria sido uma vacina contra a esquerda “radical” (como lhe chamou o PS antes de ser obrigado a entrar no choradinho geral) nos países onde ela desponta com algum vigor e faz estremecer os arcos do poder que, há décadas, promovem a União dos interesses da finança.
O corajoso combate dos gregos e dos seus representantes democraticamente eleitos, independentemente dos desenvolvimentos na aplicação do programa de austeridade reforçada – falta ver como vai o governo de Tsipras lidar com ele - permitiu que a U.E. e os seus subterrâneos ficassem a nu e sob o escrutínio de todo mundo e, em especial, dos cidadãos europeus.
O monolitismo que permitiu a imposição do programa foi abalado, o tema nuclear da reestruturação da(s) dívida(s) impôs-se e tornou-se uma arma afiada contra a austeridade, enquanto o Tratado Orçamental perdeu qualquer credibilidade que restasse para reformar as economias. Ou seja, os instrumentos fundamentais da política de austeridade faliram ostensivamente.
Estes meses de confronto entre a exigência do governo grego de democracia e solidariedade, num apelo aos abstractos valores europeus, contra os blindados da reacção europeia acantonada nas instituições sem legitimidade democrática, a começar pelo Eurogrupo, continuando no BCE e nos cobradores de contas difíceis e terminando no diktat alemão desmascararam, de forma incomum, perante a cidadania europeia, a farsa que a União Europeia é, de facto, desde o seu início.
Mais ainda: o combate da Grécia convocou todas as forças e entidades progressistas, democráticas ou simplesmente humanistas e mexeu de forma marcante com o mundo, nomeadamente o mundo habituado a assistir interessado e, por vezes, compungido, nunca claramente revoltado muito menos insurgente, à catástrofe, entre guerras e genocídios, sempre repetida que as políticas das grandes potências – nomeadamente dos EUA e da UE - provocam por esse mundo fora.
Por outro lado, a exposição mediática pouco vulgar que a táctica negocial do Syriza provocou, mostrando quase sem disfarce a irrelevância das regras, sempre invocadas, no funcionamento das instituições europeias, a total subversão dos valores sempre beatificamente anunciados como guias intocáveis do santuário mafioso, conferiu aos cinco meses de confrontação um carácter quase catártico de que resulta uma difusão virtuosa do conhecimento da coisa.
Esse conhecimento, associado à consciência crescente da necessidade de unidade na luta, reforçada pela evidência de que a derrota da Grécia nesta dura batalha se deveu em muito à falta de solidariedade por parte dos outros 18 Estados que se assumem como rafeiros de Schäuble (claro que uns rosnando ferozes outros ganindo meiguinhos) ao mesmo tempo que confere força à rejeição da UE, promove factores importantes para reforçar o movimento geral contra a austeridade, logo contra a UE em presença.
A vacina Merkel pode, assim, funcionar ao contrário: o pessoal está a vacinar-se contra a conversa fiada de que os credores devem ser ressarcidos pela sua generosidade e contra a hipocrisia do “respeito pelas regras” que nenhuma das potências dominantes respeitou mas está pronta a impor com a brutalidade característica do poder absoluto, quando se trata de financiar os bancos à custa dos que por eles já foram espoliados.
Da sabedoria dos povos
Os povos, as nações ou, dito de forma mais precisa, os trabalhadores na Europa, enfrentam uma ofensiva sem precedentes
Apesar da derrota imposta pela aliança reaccionária que domina a Europa, o Syriza constitui a mais avançada linha da esquerda europeia na estratégia defensiva em que se integra a luta contra a austeridade
Os porta-vozes informais da aliança já traçaram a linha de ataque ideológico: o Syriza é composto por grupos revolucionários que se escondem por detrás da sua aparente contemporização social-democrata; a Europa foi construída pelo centro (social-democracia mais democracia cristã) e são essas as forças que podem traçar os seus destinos independentemente da expressão das vontades nacionais; o granel a que se assiste só é comparável ao dos antigos Estados comunistas (!).
Os trabalhadores e a esquerda travam uma luta desigual em que o inimigo tem o controlo das armas pesadas mas, ao mesmo tempo, vê crescer a sua vulnerabilidade quando a trincheira de mentiras, de silêncios, de equívocos, de manipulação ideológica com que construiu a hegemonia e assegura o poder, ameaça ruína
Ou seja, como diria um qualquer comandante dos Comandos em território ocupado, tudo o que mexa é para abater!
Os trabalhadores e a esquerda travam uma luta desigual em que o inimigo tem o controlo das armas pesadas mas, ao mesmo tempo, vê crescer a sua vulnerabilidade quando a trincheira de mentiras, de silêncios, de equívocos, de manipulação ideológica com que construiu a hegemonia e assegura o poder, ameaça ruína perante a ousadia do ataque que, não obstante ter sido rechaçado com implacável dureza – dada a disparidade das forças em confronto - revelou a inconsistência real da construção da entidade política que se anunciou como a matriz democrática e solidária para o progresso e o bem-estar dos povos europeus.
A luta deve ter como objectivo alargar as fileiras e a amplitude dos movimentos sociais pela democracia como base para o fim da austeridade ao mesmo tempo que desmascara a ideologia com que o inimigo impõe sua hegemonia. Foi este o grande contributo que o Syriza deu à luta dos povos europeus e para a definição da estratégia das esquerdas.
O que se passa hoje na UE assemelha-se, num outro plano, aos anos que prepararam a derrocada do muro de Berlim, ou seja o fim dos regimes chamados de leste. A primavera checa também foi esmagada pelos tanques do Pacto de Varsóvia. O fim do Euro e da UE do diktat foram anunciados pelo esmagamento da Grécia. Mas não da esquerda grega, mas não do forte laço de unidade construído durante estes seis meses de terror, mas também de dignidade e coragem, entre o Syriza e o povo grego.
É bom saber da sabedoria dos povos
O povo grego e o Syriza ousaram mas a solidariedade que esperavam, dado que a sua luta continha também a transformação na UE do diktat da democracia, foi-lhes cinicamente negada por todos os que se instalaram no poder babando-se de democracia e de valores europeus à brava. Política desprezível que tem que ser desmascarada como tal.
É preciso ter claro que a defensiva exige não trincheiras mas movimento. Que as derrotas, se delas tirarmos lições dos erros mas também lições da capacidade de iniciativa, da ousadia e, principalmente, do pensamento estratégico que orientou a acção, podem ser prenúncio de vitória
Por seu lado, as esquerdas europeias foram bafejadas pelo vigor, a frescura e a inteligência política que nos ficou deste combate.
Sim, é preciso ter claro que a defensiva exige não trincheiras mas movimento. Que as derrotas, se delas tirarmos lições dos erros mas também lições da capacidade de iniciativa, da ousadia e, principalmente, do pensamento estratégico que orientou a acção, podem ser prenúncio de vitória.
O fim anunciado da UE não significa o fim do conglomerado de países europeus sob o comando colonial da Alemanha orquestrada pela finança e pela NATO. Esse conglomerado irá até às últimas consequências para se manter, sob a mesma designação, como representação falsificada do que há quarenta anos foi apresentado como o futuro de solidariedade, progresso e democracia.
O Paradoxo do Barbeiro
Um tipo que sempre apoiou o ataque à democracia e à vida dos gregos, e sempre fez tudo para que a Grécia saísse do euro, aparece no fim a dizer que por acaso até foi ele que se lembrou da fórmula que permitiu continuar o massacre por forma a que todos os torturadores ficassem bem na fotografia
Um tipo que sempre apoiou o ataque à democracia e à vida dos gregos, e sempre fez tudo para que a Grécia saísse do euro, aparece no fim a dizer que por acaso até foi ele que se lembrou da fórmula que permitiu continuar o massacre por forma a que todos os torturadores ficassem bem na fotografia.
Passos Coelho é mesmo foleiro.
Costa, na sua insuperável ironia, saúda-o, tipo finalmente fizeste alguma coisa decente, para se alinhar nas conclusões: encontrámos a solução boa para todos!!!! Salvámos a UE!!!!
Por lembrança, ou in memoriam, a construção da UE consagrou um programa a longo prazo do capital financeiro (“Os tiranos fazem planos para dez mil anos”).
O euro veio aprofundar o carácter explicitamente financista de tal programa.
Na altura, o tratado fundador de Maastricht, dado o seu carácter de radical (lá andam os radicais) mudança foi sujeito a referendo na Dinamarca que o rejeitou.
O Tratado de Lisboa que veio substituir o Tratado Constitucional elaborado por Giscard d´Estaing que fora chumbado nomeadamente pelos franceses em referendo, também foi chumbado pelos irlandeses em referendo mas a coisa não valeu porque o que estava no tratado era o sim e os irlandeses dois anos depois lá foram levados ao sim senhor.
Em Portugal o arco da governação, PS, PSD e CDS, não permitiu a realização de qualquer referendo tendo Luís Amado (hoje do BANIF de braço dado com Obiang, sempre PS) dito que se por acaso dum referendo saísse um não o referendo devia ser repetido.
Claro que esta é a matriz democrática do neoliberalismo e da social-democracia defunta mas cujo ectoplasma não deixa de nos aparecer sempre que se trata aparar as esquírolas da bruteza dos tratados sejam eles respeitados ou não.
Os PS por essa Europa fora fizeram parte da equipa de tortura ao povo grego, verificando atempadamente se o torturado podia ou não continuar a sê-lo sem perecer.
O PS/europeu apoiou todas as medidas de humilhação e rendição da Grécia até à imposição final, macaqueando um final feliz acerca do Grexit.
A esquerda coerente e consequente será capaz de gerar alternativa, sustentando o seu apoio sem reservas à luta do povo grego na sua matriz genuína, assumindo o confronto com as instituições europeias que impõem “a [austeridade] como política”, como forma radical de responder à crise do sistema financeiro e do euro
O SPD, uma referência do PS/europeu, um dos grande fundadores da Europa moderna, preferiu governar com Merkel participando activamente no massacre, quando podia ter condicionado o governo Merkel que dele depende para a maioria no Bundestag.
Hollande ajudou à tortura (o torturado ainda aguenta!) e quando começou a perceber que a tortura estava a provocar a sua própria perda, apareceu a dizer que salvou o torturado da morte.
António Costa fez o mesmo assessorando Hollande, fazendo propaganda de um encontro dos socialistas europeus para salvarem a pele e congratula-se com o acordo: Finalmente, graças ao PS/europeu, presume-se, a UE encontrou de novo o caminho da virtude.
Como vimos os gregos não tiveram aliados onde as boas vontades poderiam supor eles encontrarem-se.
A esquerda europeia vai encontrar aliados entre aqueles que já não conseguem suportar esta espécie de “paradoxo de Russell” ou, mais terra a terra, “ paradoxo do barbeiro”. Ou seja: por definição eu pertenço a um conjunto mas de acordo com essa mesma definição não lhe posso pertencer!
A esquerda coerente e consequente será capaz de gerar alternativa, sustentando o seu apoio sem reservas à luta do povo grego na sua matriz genuína, assumindo o confronto com as instituições europeias que impõem “a [austeridade] como política”, como forma radical de responder à crise do sistema financeiro e do euro.
Comentários
"Foi este o grande contributo
"Foi este o grande contributo que o Syriza deu à luta dos povos europeus e para a definição da estratégia das esquerdas."
É verdade que este processo abriu um enorme campo à Esquerda e provocou enormes avanços nas consciências. Quem é que hoje em dia pode desmentir que a UE é um monstro anti-democrático? Quem pode desmentir que só sobre os escombros desta UE se pode construir uma Europa minimamente solidária e resgatar a democracia? Quem depois de tudo isto ainda pode recusar uma saída do euro como passo necessário para romper com a "austeridade" de matiz neo-liberal?
O Tomé faz bem em bater no Hollande, Costa e no SPD... mas convinha também perceber que chegados a este ponto a liderança de Tsipras também se esgotou. Até aqui cumpriu um papel, mas daqui para a frente esse Alexis que hoje em dia implementa na Grécia o mais fanaticamente neo-liberal e até neo-colonial de todos os resgates não será quem vai liderar a luta à Esquerda. Um Tsipras que deitou o resultado do referendo para o caixote do lixo, que manda a polícia contra manifestantes (curiosamente a unidade anti-motim Delta que havia prometido desmobilizar...), que ataca ferozmente a sua ala esquerda e quem se opõe à rendição no interior do Syriza, esse Tsipras (que me faz lembrar um pouco Soares...), não será ele a continuar a luta.
Quanto mais cedo a Esquerda interiorizar isso melhor.
https://cincodia5.wordpress.com/
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