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Uma vacina para o Mundo

Compete ao Estado zelar pelos direitos fundamentais das crianças e, se necessário, contra a vontade dos pais.

A febre negacionista que tenta, a todo o custo e com enorme fundamentalismo, repetir a ideia da irrelevância ou dos malefícios nos programas de vacinação do sarampo é a mesma corte de arrogantes que recusa o aquecimento global e as alterações climatéricas com o ferro assanhado em todos os dentes. "É a evolução, estúpido!" ou relógio que faz avançar o tempo da ciência pelo curso do homem na história, no que tem de melhor e de pior. A alucinação e o histerismo concorrem para o pensamento que pretende devolver o Homem à natureza à custa da doença. O problema maior é que se isso até se pode defender para o Homem, já não é tolerável que se possa defender para as crianças. Compete ao Estado zelar pelos direitos fundamentais das crianças e, se necessário, contra a vontade dos pais. À custa da sua sobranceria, a corte negacionista está à distância da ciência por um par de séculos. E não há vacina ou punição que os salve. Os direitos fundamentais das crianças não se encontram na esfera de disponibilidade dos pais.

Foi como uma vacina. O plano fixo de Donald Trump discursando ao lado de um coelho gigante na Casa Branca é o meu momento pascal da ressurreição. Ao lado de um coelho de peluche, eis o homem que se terá emocionado em família com o sofrimento das crianças sírias mas que é incapaz, por seu decreto de mão, de receber uma criança síria no seu país. E assim sendo, largar bombas na Síria, Iraque ou Afeganistão não passa no acto da cirurgia: a mãe de todas as bombas só desaba sobre a réstia de "paciência estratégica" que nunca revelou ter. Só a coluna direita dos negacionistas ousaram pintar Trump pela tese frigorífica do vamos-ver-o-que-isto-dá-até-ao-prazo-de-validade. Para além da Guerra Fria, fatal como o destino. Talvez por isso tenha havido gente que acreditou: a única mentira que Trump não contou nas eleições americanas foi sobre si.

O carácter epidémico das más ideias resolve-se com inteligência na negociação, regulação da dureza e só muito raramente com agressão primária. Foi esse debate de ideias que ergueu Mélenchon das cinzas e encostou Marine Le Pen ao segundo lugar nas sondagens para as eleições francesas de domingo. Ninguém duvida que Trump felicitaria Le Pen como felicitou Erdogan após a vitória no referendo turco. E que na antevisão de Trump e amigos, perto da Coreia do Norte de Kim-Jon-un só mora o sul da Coreia. Sem ponta de responsabilidade, até porque é tudo muito longe. A ideia primária da agressão é aquela que nem perde tempo a estabelecer pensamento sobre as consequências das palmadas nas costas ou das implicações do ataque. Foi a vacina contra os direitos humanos que este Mundo arranjou. Isso sim, é nuclear.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 19 de abril de 2017

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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