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Uma repugnância atrás da outra

A crise económica provocada pela Covid-19 será longa e profunda. Para a enfrentar, o Estado terá de entrar em campo como poucas vezes vimos, para apoiar o emprego, as empresas e a produção.

Uma parte deste apoio deverá necessariamente chegar sob a forma de créditos garantidos, subsídios diretos e até mesmo nacionalizações, sempre que estiverem em causa empresas estratégias. Mas uma outra parte, também importante, passa pela regulação de setores e empresas que fazem do abuso a sua regra.

Para além da violação dos direitos laborais em contexto de crise, há outras práticas que devem ser impedidas. É o caso da distribuição de lucros, seja de que forma for.

Se este é o momento de manter o emprego, de financiar a economia e de conceder moratórias aos pagamentos de bens essenciais, então este não pode ser o momento para o BPI entregar 117 milhões aos espanhóis do Caixabank, para a Navigator entregar 100 milhões à Semapa, da família Queiroz Pereira, ou para a EDP Renováveis pagar 70 milhões à EDP que, por sua vez, os entregará à China Three Gorges e à Blackrock, que é "só" o maior fundo privado do Mundo. Bem sabemos que, "nos mercados", os investidores e especuladores, alguns deles acionistas destas empresas, pouco querem saber da sustentabilidade da economia portuguesa. A prova é a penalização das ações do BCP depois de anunciada a suspensão da distribuição dos dividendos de 2019, tal como recomendado pelo Banco Central Europeu. Mas a obrigação de todas as empresas (a tal "responsabilidade social" que faz as delícias do marketing empresarial), é proteger os postos de trabalho e a sua solvabilidade futura. Para que isso seja garantido, não só a distribuição de dividendos das grandes empresas deve ser proibida, como essa regra se deve alargar a outras formas de desnatação, como o pagamento de suprimentos ou respetivos juros.

Para terminar, já que falamos de responsabilidade social das empresas, sobretudo das grandes, talvez este seja também o momento de questionar as suas estratégias de planeamento fiscal. É que, nunca é demais recordar, as holdings de todas as empresas do PSI20 (para onde vão muitos dos dividendos) pagam os seus impostos na Holanda. Já o ministro das Finanças holandês, que não se preocupa em manter um offshore fiscal que destrói as receitas dos outros estados, acha que os países que dizem não ter margem orçamental para lidar com a crise do coronavírus deviam ser investigados pela União Europeia. E o pior é que é mesmo possível que Bruxelas venha a exigir austeridade para compensar o apoio por conta da crise sem precedentes causada pelo vírus.

É uma repugnância atrás da outra.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 31 de março de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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