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Uma lei de bases na chuva

Se a realidade atual veio confirmar os receios previstos e partilhados pelo PS em 1990, o que terá mudado na análise política do grupo parlamentar do PS para, hoje, hesitar nesta questão estruturante?
Em defesa do SNS - Foto de Paulete Matos

O debate sobre a nova Lei de Bases da Saúde tem sido vivo, intenso e clarificador. Vivo porque todos estão chamados à reflexão; intenso porque confronta diferentes mundividências e clarificador porque demonstra quem defende o Serviço Nacional de Saúde (SNS) enquanto instrumento público de produção de saúde individual e coletiva – SNS com provas amplamente dadas em resultados de saúde!

A direita tem mostrado a sua ausência de projeto para o SNS ao pretender fomentar o desmantelamento do único instrumento social e organizacional público que garante a liberdade de viver com confiança na proteção contra a doença. De facto, em continuidade com a Lei de 1990, a direita continua a promover as práticas: (i) da entrega da gestão de unidades públicas de saúde ao setor privado (PPP) e (ii) da tendente precarização das profissões de saúde exercidas no setor público.

Recorda-se que, aquando da votação final da Lei de 1990, as esquerdas parlamentares uniram-se para avocar diversas normas, tentando impedir, norma a norma, a “degradação e degenerescência” do SNS que António Arnaut e João Semedo caraterizaram.

Entre essas normas lesivas ao SNS encontravam-se as PPP que, salienta-se, o PS, o PCP e o PRD rejeitavam porque: “a entrega dos hospitais ou dos centros de saúde do serviço nacional de saúde à gestão ou exploração por entidades privadas, transforma a saúde dos portugueses num negócio gravemente nefasto, porque levará a uma diminuição da qualidade dos serviços prestados e a uma eventual perda do vínculo profissional dos trabalhadores do Serviço Nacional de Saúde ou, pelo contrário, ao aumento das despesas do Orçamento de Estado” [DAR, 13 Julho 1990, pp.3580].

Tudo se confirmou. As notícias recentes relatam casos de falseamento de dados clínicos; de internamentos em refeitórios e casas de banho; de aumento dos tempos de espera... a perda de vínculo e de dedicação profissional ao SNS... Ora, se a realidade atual veio confirmar os receios previstos e partilhados pelo PS em 1990, o que terá mudado na análise política do grupo parlamentar do PS para, hoje, hesitar nesta questão estruturante?

Se as recentes notícias sobre a desadequação das PPP de (ainda apenas) quatro hospitais não bastarem para demover a maioria do grupo parlamentar do PS para caminhar em direção à extinção tempestiva desta solução no SNS, restará pensar que os efeitos da Lei de 1990 foram bem mais profundos que aqueles inicialmente supostos. Restará pensar que abalaram as fundações do PS e que o “espírito do tempo” neoliberal, destrutivo do “Estado Social”, se entranhou preocupantemente no partido de Mário Soares e de António Arnaut.

Uma nova Lei de Bases da Saúde é importante se puder contrariar a estrutura fundamental da Lei de 1990. É importante se vier a marcar um rumo novo para o SNS. É importante se a sua aprovação refletir um compromisso de futuro para com as políticas públicas de saúde inabalável por conjunturas eleitoralistas, xadrez partidário ou putativa intromissão presidencial. Para isso o PS não pode claudicar na sua própria visão quanto ao SNS. Não pode afastar-se mais de Arnaut. Nem agora, nem no futuro.

“Saibamos unirmo-nos na construção do que sabemos querer, como temos sabido unirmo-nos na defesa do que queremos defender” (António Galhordas, 1989).

Publicado no “Público” a 11 de junho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Teresa Gago é médica Dentista e vereadora do PS em Cascais (2013-2017); Adelino Fortunato é professor de Economia e dirigente do Bloco de Esquerda
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