Os últimos dias confirmaram a intenção de Passos Coelho e da actual maioria imporem rapidamente a constitucionalização de limites ao endividamento e ao défice. O PS, que é necessário para concretizar a chantagem do Directório europeu e dos “mercados”, não esclarece a sua posição – uma hesitação que reforça o projecto para impedir as políticas públicas que podem enfrentar a crise e defender o emprego e os serviços públicos.
Entretanto, do PSD ouvimos garantias de que, afinal, as alterações mais profundas à Lei Fundamental, que tanto comprometeram o actual Primeiro-Ministro quando apenas espreitava a sucessão de Sócrates, ficarão para depois. Passos Coelho, que sonha com o fim da justa causa para os despedimentos ou com a anulação do princípio da gratuitidade no acesso à saúde e à educação, é hoje, talvez, mais pragmático e comedido. Mas não mudou: esse programa está em plena implementação, sem terem sido introduzidas alterações constitucionais.
A coisa é outra. A obsessão para alterar profundamente a Constituição corresponde a uma ofensiva ideológica e não a qualquer urgência prática. Há cerca de um mês, o convidado António Barreto ensaiou a táctica na “Universidade de Verão” do PSD. O homem a quem foi confiada a coordenação das publicações e estatísticas patrocinadas por Alexandre Soares dos Santos dispensa apresentações: esforçado na sua imagem de independência e rigor, mas destemido nas ideias. Diz o sociólogo que “a elaboração de uma nova Constituição é uma tarefa muito urgente”, porque actualmente “diminui a liberdade dos cidadãos e dos seus representantes”. Convenientemente, Barreto considera que este é o momento ideal para o Governo e a Assembleia da República se debruçarem sobre a exigente tarefa, que permitiria livrar-nos da “carga ideológica” da Constituição e chegar a uma nova versão, agora enunciadora de “princípios universais e permanentes”.
A proposta retoma no essencial o projecto de desmantelamento progressivo e consistente de referências nos direitos e nos instrumentos colectivos que respondem às necessidades do conjunto da população – pretensão que não traria, à primeira vista, especial novidade. Mas Barreto empenhou-se na originalidade e no alcance: esta “nova Constituição” dispensaria uma Constituinte, mas seria sujeita a um referendo popular, em que o “soberano” decidiria.
Num momento em que as ruas de vários países vêm clamando por democracia (“verdadeira”, aliás), António Barreto quis embrulhar a sua proposta de regressão social nas aspirações expressas pelas mobilizações que marcaram os últimos meses. A fórmula que escolheu pretende, em parte, confiscar o seu capital de protesto. Talvez por isso se preocupe agora com “recriar um sistema eleitoral que não exclua cidadãos”, sugerindo uma ilusão de participação e decisão enquanto propõe um futuro condicionado e ainda mais incerto.
Mais ou menos indignados com a situação actual, pertencentes a esta ou aquela geração, temos de perguntar o essencial: será que a Constituição imaginada por Barreto contemplará, entre os seus “princípios universais e permanentes”, o direito ao trabalho, à habitação, à provisão de serviços públicos de qualidade e de acesso geral ou à existência de um sistema de Segurança Social público? Será que a democracia estará mais defendida e a política se encontrará mais perto ou mais facilmente exercida pelos cidadãos? Temos boas razões para duvidar.
Há coisas alegadamente antigas que são bem mais actuais do que alguns truques do presente. A consagração de direitos – e a subjugação do exercício do poder político ao respeito por esses direitos – é tão essencial hoje como no momento em que foi desenhada a Constituição. Contra o projecto de Barreto e da direita, está a circunstância de nenhuma sociedade ou geração ter interesse em abolir direitos fundamentais, por mais subtil e encantadora que seja a prosa que o defende.