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Um passo essencial para reformas mais justas e sem cortes

O Parlamento dos Açores aprovou por unanimidade uma proposta do Bloco para que as pensões de desgaste rápido que ainda levaram cortes sejam todas recalculadas à luz das novas regras. Merecerá tal regra o mesmo consenso no continente? Ou haverá partidos a mudar de posição?

A notícia foi dada em maio deste ano como uma hipótese, que o Primeiro-Ministro corroborou: em 2023, talvez a idade legal de reforma baixe dois meses. Por um triste motivo, contudo. Como está indexada à esperança média de vida, as mortes por Covid podem fazer recuar para os 66 anos e 5 meses a idade para aceder à pensão. Em 2022, pelo contrário, já está decidida nova subida face a este ano: só aos 66 anos e 7 meses os trabalhadores poderão finalmente reformar-se.

Até à vinda da troika e ao Governo do PSD e do CDS, a idade da reforma era fixa: 65 anos. A essa norma geral somavam-se alguns regimes especiais. Nuns casos, por se reconhecer o desgaste rápido associado a profissões específicas (como mineiros, bailarinos ou pescadores, por exemplo), a idade de acesso à pensão baixava (e baixa ainda!) numa proporção dos anos no exercício dessas atividades. Noutros casos, a combinação entre uma certa idade e a condição de desempregado de longa duração permitia ir mais cedo para a reforma. A partir dos 60 anos, era também possível pedir reforma antecipada, mas com enormes cortes, às vezes de dois terços da pensão.

Chegados a 2015, tínhamos um cenário insuportável. A idade da reforma aumentava todos os anos, regra que se mantém. Paralelamente, não havia nenhuma consideração por quem tivesse começado a trabalhar com 11, 12, 13 ou 14 anos. Essas vítimas do trabalho infantil tinham exatamente a mesma idade de reforma do que quem começou a trabalhar aos 20 ou depois. Além disso, a tal “esperança média de vida” penalizava duplamente, porque além de a idade da reforma ter deixado de ser fixa, nas pensões antecipadas havia dois cortes. Uma redução de 6% por cada ano que faltava para chegar à idade legal de reforma (fórmula que ainda se aplica) e um segundo corte, o chamado “fator de sustentabilidade”, que ultrapassa os 15% e é vitalício, ficando para sempre na pensão.

Em 2018 começámos a corrigir algumas injustiças. Criou-se o regime das “longas carreiras contributivas” para que, aos 60 anos, quem já tivesse 46 anos de descontos pudesse reformar-se sem qualquer penalização – nem fator de sustentabilidade, nem “fator de redução” pelo tempo que faltava até aos 66 anos e 5 meses. Em 2019, acabou-se com o corte do fator de sustentabilidade para quem, aos 60 anos de idade, já tivesse 40 anos de descontos e criou-se uma “idade pessoal de reforma”, reduzida face à idade legal em 4 meses por cada ano de desconto acima dos 40 anos de contribuições. Em 2020, eliminou-se o fator de sustentabilidade para quem se reformasse ao abrigo dos regimes especiais de desgaste rápido. Foram passos que implicaram muita luta, muita insistência e que se ganharam. Mas se olhamos à volta, é impossível ignorar as tantas injustiças que permanecem. O percurso iniciado ficou a meio.

Desde logo porque ao fim de uma carreira de 40 anos de descontos ou mais, uma grande parte das pessoas sente-se esgotada, mas continua a não ter direito a reformar-se sem penalização, à exceção de um punhado de profissões. Mesmo que tenha a sorte de completar esses 40 anos de contribuições quando faça 60 de idade, escapando assim ao “fator de sustentabilidade”, continua a ter um pesadíssimo “fator de redução”: se aos 60 anos lhe faltam ainda 6 anos e 6 meses para a idade legal de reforma, tem um corte de 39% na pensão. É incomportável. Por outro lado, persiste uma enorme injustiça relativa para as pessoas que, por terem começado a trabalhar quando eram crianças e terem longuíssimas carreiras (mais de 46 anos de descontos), não teriam qualquer penalização se se reformassem hoje, mas como pediram a sua pensão antes de 2018 continuam a ter, para toda a vida, a penalização e o fator de sustentabilidade. O mesmo acontece para quem se reformou ao abrigo dos regimes especiais de desgaste rápido entre 2014 e 2020 – se teve o azar de se reformar nesse período, ficou para sempre com um corte na pensão, que hoje já não se aplica a quem peça reforma nas mesmas condições.

Reparar estas injustiças tem de ser uma prioridade. E o debate já foi lançado. Em julho passado, o Parlamento dos Açores aprovou por unanimidade uma proposta do Bloco para que as pensões de desgaste rápido que ainda levaram cortes sejam todas recalculadas à luz das novas regras, eliminado para sempre essa talhada no seu valor. É justo e já foi feito relativamente a algumas pessoas que acederam à pensão entre 2019 e 2020. Mas a medida dos Açores tem agora de ser validada pela Assembleia da República para poder aplicar-se. Merecerá tal regra o mesmo consenso no continente? Ou haverá partidos a mudar de posição? Vamos ver. Que é de elementar justiça, não há dúvida. O corte do fator de sustentabilidade deveria aliás ser retirado de todas as pensões de quem já trabalhou mais de 40 anos.

Mas não é tudo. Continuamos a ter, em Portugal, condições de trabalho pesadas, carreiras contributivas feitas de baixos salários e pessoas que começaram a trabalhar muito cedo. Exigir-lhes que se arrastem até aos 66 anos e 7 meses é uma crueldade. Permitir que se reformem mais cedo com uma pensão digna é uma questão de reconhecimento do que já fizeram, mas é também uma forma de levar sangue novo a serviços e empresas, criando oportunidades de emprego para os mais jovens.

É viável? Claro que sim, nem que seja feito de forma gradual. Por um lado, há ainda caminho a ser trilhado na diversificação das fontes de financiamento da segurança social, nomeadamente mexendo na contribuição em função dos lucros de empresas de capital intensivo e pouca mão-de-obra, dando garantia de sustentabilidade para novos direitos. Por outro, devemos ter uma idade da reforma que tenha em conta a história de cada um. Esta ideia de uma “idade pessoal de reforma” já está na lei. Precisamos é de desenvolvê-la de forma consequente. Um primeiro passo é garantir que quem trabalhou mais de quarenta anos veja antecipada a idade legal de reforma em pelo menos um ano por cada ano de trabalho para lá desse período. Quem trabalhou por turnos deve poder reformar-se mais cedo pelo desgaste do regime laboral em que esteve, sem penalizações. Quem trabalhou com incapacidade, deve também ver reconhecida essa condição de desgaste pessoal em que exerceu a sua profissão, com uma idade pessoal antecipada e sem cortes.

Face a tantos discursos de preocupação com a qualidade do envelhecimento e com o emprego jovem, eis um progresso concreto mais que razoável que fará toda a diferença na vida de centenas de milhares de pessoas.

Artigo publicado em expresso.pt a 2 de outubro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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