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Um grande Movimento Internacionalista pela Paz

É por causa da emancipação que a esquerda se bate pela paz e não por um imperativo moral de que qualquer paz é sempre superior a qualquer guerra. O desafio atual é o de resgatar esse sentido emancipatório e de crítica radical num grande movimento internacionalista pela paz.

O movimento pela paz foi sempre heterogéneo. Mas, ao longo do tempo, uma das suas componentes principais foi uma crítica radical ao confinamento do espaço político e do debate público por uma construção da realidade como fechada num antagonismo simplista (país A contra país B, como se o país A e o país B não fossem muita coisa, não tivessem muitas tensões e contradições internas, neles não houvesse disputa de políticas e de poder)

O movimento pela paz incorporou sempre essa exigência de “descascar” o que é apresentado como sendo os atores que contam nos conflitos (os Estados, apresentados como algo tão opaco como as bolas de bilhar), trazendo para o centro da análise as políticas, a hierarquias socioeconómicas e todas as violências que a geopolítica oculta atrás da sua ontologia pobre (só Estados, quando não mesmo só grandes potências)

A esquerda não se bate pela paz por “fofura”, mas por não aceitar a guerra como dispositivo de apagamento de centralidade da luta política e de todas as lutas emancipatórias em todas as escalas. É assim que vejo o pacifismo de Martin Luther King como um patamar superior da luta antirracista e pelos direitos civis e o pacifismo de Gandhi como um estádio superior da luta anticolonial, que recusava não só o colonialismo formal, mas os próprios modelos de raciocínio e de ação violenta dos opressores e desarmava a sua estratégia repressora através da resistência não violenta.

É por causa da emancipação que a esquerda se bate pela paz e não por um imperativo moral de que qualquer paz é sempre superior a qualquer guerra. As guerras de libertação nacional, as guerras de resistência à opressão e ocupação e as guerras contra a tirania não merecem a reprovação de princípio da esquerda, antes a sua solidariedade – precisamente porque elas são instrumentos tornados necessários para a emancipação essencial.

Em fevereiro de 2003, as manifestações gigantescas pela paz contra a guerra no Iraque foram manifestações contra o imperialismo e contra a economia política mundial que conduziu o processo político internacional para aquela guerra. O desafio atual é o de resgatar esse sentido emancipatório e de crítica radical – não só da guerra, mas do que conduz a ela – num grande movimento internacionalista pela paz.

Diante da guerra na Ucrânia, este desafio geral desdobra-se em cinco desafios concretos. O primeiro é o de fazer a “vozearia” pela paz que se contraponha à vozearia pela guerra que se instalou no espaço público e quebre a hegemonia dos discursos de apologia da solução militar, que é uma completa irresponsabilidade porque convoca à destruição que arrasta destruição, e parte de uma fantasia negando o pesadelo que ela arrasta. O segundo desafio é o de articular o primado da solução política com o primado da autodeterminação dos povos. O mundo precisa de uma solução política para a guerra da Ucrânia para que a autodeterminação daquele povo e de todos os povos daquele território se cumpra. A invasão da Ucrânia e a agressão russa são o contrário disso. O terceiro desafio é o de juntar forças para exigir um investimento político urgente na densificação dos canais que se mantêm apesar da guerra: o canal da exportação dos dos cereais e o canal da troca de prisioneiros. Em terceiro lugar, impõe-se retirar à compaixão humanitária o exclusivo da crítica da guerra – é justamente em nome das vítimas diretas e indiretas que o primado da solução política tem de ser claramente apontado como elemento de uma arquitetura de segurança duradoura e ambiciosa guiada pelos valores da segurança humana e da segurança climática. Finalmente, o grande movimento internacionalista pela paz terá sempre uma vocação interseccional, articulando agendas e lutas, como a do movimento feminista que põe a nu a natureza patriarcal do sistema internacional alicerçado na competição guerreira, ou a do movimento pela justiça climática que evidencia que essa luta está no centro de todas as estratégias de prevenção de conflitos no nosso tempo.

Crítica política e ideológica radical dos discursos e das práticas que alimentam a guerra travando a emancipação – é por isso que é tão importante um movimento forte pela paz.

Este texto reproduz a intervenção no curso “Guerra, imperialismos e desafios à paz”, organizado pela Cultra em 11.3.2023

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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