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Um embuste de perna curta e o outro

A viragem à direita do Governo Costa, sobretudo a maioria absoluta que festejou em janeiro, tem sido particularmente visível no domínio da lei laboral.

Raramente, se é que alguma vez acontece, há um erro na escrita das leis do trabalho. A razão é simples, é escrutinada ao detalhe por interesses tão mobilizados quanto os que se movem na finança. Desse modo, antes de chegar à tinta da impressão, o texto é negociado por comissões, grupos, associações e ilustres juristas que as servem e até, ocasionalmente, por algum governante mais afoito. Desse processo resulta normalmente uma lei, ou não mais do que uma modificação atómica, que sabe o que quer, sendo couraçada pela linguagem hermetizada da comunicação entre juristas e, depois, protegida através de uma floresta de interpretações jurisprudentes que impõem a sua ordem. Nesse segredo discreto raro será o deslize, tudo é calculado.

Os professores de Direito João Leal Amado, Teresa Moreira, Milena Rouxinol, Joana Vicente e Catarina Santos, sabendo desta missa, escolheram por isso uma pitada de sarcasmo para se referirem a um dos detalhes da novel Agenda para o Trabalho Digno, num artigo desta semana no “Público”. Lembrando que a lei proclama garantir melhor pagamento na cessação do contrato a prazo e faria exatamente o contrário no mais dos casos, ao evitá-lo sempre que o contrato cessasse automaticamente, perguntaram se se trataria do erro impossível: “Resta-nos ser ingénuos e acreditar que tudo talvez não passe de um equívoco, de uma distração, de uma técnica legislativa inadequada utilizada pelo legislador, ao redigir esta norma da Agenda do Trabalho Digno. Talvez um copy-paste mal feito... É que esta regra, a manter-se tal qual está, será mesmo uma norma indigna.” Se assim for, concluem, é um “embuste”.

Há um embuste sobrevivente: a anulação da promessa de uma norma que protegeria os trabalhadores das plataformas digitais

Para um Governo tão atento à comunicação social, seria de esperar que, a haver equívoco, o ministério agisse depressa. Há alguns dias, quando a ministra anunciou no parlamento medidas que tinham entretanto sido retiradas da proposta de lei e lhe foi chamada a atenção, apressou-se a dizer, se bem que horas depois, que afinal tudo seria remetido para outra legislação, uma alegação duvidosa mas que serviu para tapar a celeuma. Neste caso, só dois dias depois lá veio a explicação, seria mesmo um “lapso” de copy-paste, a corrigir. Ficará o mistério.

O que, em contrapartida, é intocável para o Governo é a escolha principal desta legislação, o embuste sobrevivente: a anulação da promessa eleitoral de uma norma que protegeria os trabalhadores das plataformas digitais. Teresa Coelho Moreira, que coordenou o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, mostrou a sua desilusão com este recuo, que mantém assim o “modelo de ouro”, como lhe chama a Uber, em vez de impor a relação contratual com os seus trabalhadores. “Parece, à primeira vista, que, como nas leis de TVDE, é o próprio legislador que ao criar uma [outra] entidade vem impedir o estabelecimento do contrato com a plataforma”, protesta ela. “Vamos mesmo dançar”, escrevia o diretor da Uber depois de uma promissora reunião com Macron, então ministro da Economia.

A viragem à direita do Governo Costa, sobretudo a maioria absoluta que festejou em janeiro, tem sido particularmente visível neste domínio da lei laboral. Foi uma das razões principais para ter recusado um acordo com a esquerda desde 2019. O que talvez não se adivinhasse foi que depois dançaria tão alegremente entre equívocos e embustes.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 29 de julho de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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