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Um ano depois do 12 de Março, a cidadania é um desporto de combate

Há um ano, enchemos as ruas como nunca havíamos feito. Um ano depois, onde estamos? Que caminhos percorremos? O que aprendemos no percurso? De que seremos ainda capazes?

A manifestação de 12 de Março fez parte da vaga de protestos mundiais a que o ano de 2011 assistiu, dos Indignados espanhóis ao movimento Occupy, dos tumultos ingleses aos protestos dos jovens pela habitação em Israel, da praça Tahrir à praça Syntagma. Foram mobilizações fundacionais, que criaram novas referências de luta, marcaram a trajetória de envolvimento dos que nelas participaram, trouxeram novas imagens e símbolos de contestação, abriram o espaço da cidadania. A praça, a rua e a figura do manifestante voltaram ao centro da política.

Naquele dia, há um ano exatamente, aprendemos várias lições. Primeiro, que a sociedade civil organizada (sindicatos, partidos, associações, ONGs) não captam senão uma pequena parte da cidadania potencialmente ativa. Segundo, que a questão da precariedade, do emprego e do bloqueio do futuro estão no centro das preocupações da sociedade e deviam ser o centro das preocupações da política. Terceiro, que esta é uma questão de várias gerações e que os trabalhadores mais velhos não são nossos inimigos mas os nossos únicos aliados na luta contra a austeridade. Quarto, que o desemprego e a precariedade do trabalho arrasta consigo a precariedade como modo de vida – não se trata apenas da limitação ou ausência de contrato, da inexistência de proteção social, do abuso dos baixos salários, da exploração dos aspetos mais íntimos do que somos, mas sobretudo da criação de uma forma de dependência que nos impede de ser livres, de uma vida vivida a prazo, da impossibilidade de sair de casa dos pais, da instalação de um clima de medo que nos tolhe a dignidade e a voz. Quinto, que as pessoas quando saem à rua gostam de ter expressão própria e que a rua tem de ser polifónica. Ou seja, tem de somar motivos, desafiar a criatividade e a rotina (nomeadamente a do protesto), convidar a que cada um traga a sua causa, fazer com que cada um e cada uma possa ver na luta do outro uma parte da sua luta.

Quem em algum momento achou que a eclosão desse extraordinário momento que foi o 12 de Março traria uma transformação imediata talvez tenha ficado desapontado. Mas a luta social é muito mais do que uma estética do evento ou do que a celebração da multidão. A arte da transformação – que é uma boa forma de definir a política que interessa – é precisamente a arte do contratempo, a perceção do instante propício, a decisão sobre a conjuntura e o 12 de Março foi nesse domínio exemplar. Mas ela precisa de combinar essa atenção ao acontecimento com a perceção do processo longo; essa urgência de mudança com a “lenta impaciência” que não cede ao desespero; a libertação criativa com o labor ativista que organiza as pequenas grandes lutas, que dá continuidade aos combates, inscrevendo-os no tempo.

Olhando assim, percebemos o muito que o protesto da “Geração à Rasca” nos deixou. Um país que passou a estar mais atento a este problema. Novas dinâmicas de ativismo, de desobediência, de organização, de convergência. Um novo polo de mobilização social que teve expressão nos Indignados e no 15 de Outubro. O m12m (movimento 12 de Março), que persiste corajosamente na vontade de “fazer de cada cidadão um político”.

Na rua, o 12 de Março fez desaguar mil e uma reivindicações. Talvez as mais repetidas tenham sido a frustração com uma condição marcada pelo desemprego e pela precariedade, o desencanto com as instituições políticas e o ressentimento em relação a um futuro que não parece trazer nenhuma previsibilidade nem garantia de uma vida melhor. Para enfrentar estes sentimentos e esta revolta, só há uma resposta que vale a pena: mais democracia. Mais democracia na economia e no trabalho, que é o oposto da ditadura da dívida e da política de austeridade. Mais democracia na sociedade, que é o oposto da rejeição da política (que deixa que sejam apenas os mercados a decidir), do populismo tecnocrata (o dos “governos sem políticos” – e de preferência sem eleições) e da imposição da Troika.

Por isso mesmo, provavelmente a proposta mais radical e mais consequente que saiu da “Geração à Rasca” é mesmo a Lei contra a Precariedade. A seguir ao 12 de Março, um conjunto de movimentos (o m12m, o Ferve, os Precários Inflexíveis, os Intermitentes do Espetáculo e outros) puseram mãos à obra e fizeram uma coisa única no país: juntar milhares de cidadãos para propor uma lei que ajudasse a resolver estes problemas. Um ano depois, essa iniciativa é uma gigantesca lição de cidadania. 40 mil pessoas comuns vão obrigar o Parlamento a votar uma regra que elas próprias escreveram.

Nesse dia, que esperemos que chegue em breve, teremos um momento de verdade em relação ao 12 de Março. É aí que veremos se todos os que, à direita e à esquerda, fizeram há um ano o elogio vago da participação e a apologia indefinida da “indignação”, estavam a falar a sério. No momento em que for preciso saber se afinal estão todos a favor desta medida concreta, ou se vão rejeitá-la, revelar-se-á o valor que cada um dá à mobilização cidadã. Até lá, só temos uma certeza: a batalha ainda não vai nem a meio e tem várias paragens pelo caminho, a começar numa greve geral que se quer generalizada. Se é verdade que, para já, o governo da troika e a austeridade estão a ganhar, é bom que saibam que ainda cá estamos e que falta jogar a segunda parte. A cidadania é um desporto de combate.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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