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Três truques mal contados na TAP

A TAP deu €110 milhões de lucro no verão passado, está a começar a poder pagar o adiantamento público e o Governo vai disso abdicar vendendo-a a uma empresa alemã, espanhola ou inglesa.

Vai por aí uma fanfarra sonora: por “obsessão ideológica”, o Governo nacionalizou a TAP e desbaratou €3 mil milhões dos nossos impostos, provando-se que só o privado sabe gerir estas coisas, abençoada seja a decisão da nova privatização. Nem acrescento nada à ligeira contradição de esta doutrina vir dos mesmos que festejaram quando a venda de uma das maiores empresas nacio­nais foi assinada com um membro do Comité Central do Partido Comunista Chinês (só os privados é que sabem gerir?) e continuarem felizes com o arranjo. Mas se há algo que só pode ser incontroverso é que houve uma pandemia, os aviões ficaram parados, as companhias aéreas afundaram-se e, públicas e privadas, foram resgatadas pelo dinheiro público em toda a parte. Se Neeleman tivesse continuado na TAP, não teríamos ouvido Marques Mendes e os liberais a rezarem para que o Governo pagasse a conta para que não falisse? Não teriam dito que seria uma “obsessão ideológica” não proteger a empresa privada? Ora, Neeleman, como é sabido, recusava-se a pôr dinheiro na empresa e, portanto, o seu destino era a falência, da qual foi salva pela nacionalização, a única forma de proteger a companhia depois da desistência do privado. Por isso fingir que foi a “ideologia” (“comunista”, dirá Montenegro) a determinar a pandemia e a consequente crise da aviação é um disparate lamentável. Reconstruir o passado para fingir que a TAP podia ter continuado sem a intervenção do Estado é um argumento que dá pena alheia. Em todo o caso, é um convite para que se faça um levantamento dos três truques que estão a ensombrar a TAP, bastando para tanto recordar as investigações publicadas neste jornal.

Primeiro truque: Casimiro

A história da venda da Groundforce é maravilhosa. A TAP pagou €31,6 milhões para a adquirir e, naturalmente, a sua operação é fundamental para os aeroportos que são a base da empresa. Em 2012, pouco depois do início do Governo PSD-CDS, a Groundforce foi vendida a Alfredo Casimiro, que para o efeito utilizou uma cascata de empresas, comprometendo-se a pagar €3,7 milhões por 50,1% do negócio, o que só faria seis anos depois. Entretanto, como recebeu comissões de gestão superiores a €7 milhões (ou, na sua versão, cinco), foi de facto financiado para esta privatização. Ou, como disse depois o ministro do Governo seguinte, foi pago para comprar a empresa e ainda ficou com o troco. Ao longo dos anos, a empresa degradou-se e deixou de pagar salários. Importa-se então de repetir que o privado gere melhor? Sim, ficou provado no caso da Groundforce que, com o dinheiro que não é seu, a privatização pode ser um bom negócio — até falir.

Reconstruir o passado para fingir que a TAP podia ter continuado sem a intervenção do Estado é um argumento que dá pena alheia

Segundo truque: Neeleman

O caso da venda da TAP a Neeleman e Pedrosa é ainda mais palpitante. A empresa que formaram foi selecionada nos meses anteriores às eleições e tomou posse da TAP dois dias depois de o novo Governo Passos Coelho chumbar no Parlamento. Se a Groundforce foi a operação do início do Governo das direitas, a da TAP foi a final, para arrumar a casa. Foi também uma decisão de grande gabarito e com a pressa dos negócios: no mesmo dia em que foi aprovada a privatização em Conselho de Ministros foi assinado o acordo de venda. O Estado não recebia nada, era uma venda a zero, com os novos donos a assumirem o custo da capitalização necessária — e é aqui que entrará o truque.

Como foi noticiado, está a ser investigado se Neeleman garantiu esta operação com o dinheiro adiantado pela Airbus, a troco da decisão de abdicar da compra de 12 aviões para a substituir por uma encomenda de 53, que estariam valorizados acima do preço de mercado em mais de 250 milhões de dólares. Os valores totais da perda para a TAP poderão ser de 444 milhões. Ou seja, a privatização terá sido conduzida por um empresário que não colocou capital e garantida pelo compromisso de criar um buraco na companhia. Importa-se de repetir, o privado é que gere bem?

Terceiro truque: reprivatização

Chega-se depois de tudo isto ao terceiro truque em curso na TAP, que parece ser o campo de experimentação das maiores aventuras empresariais no nosso país (descontando a entrega privatizante do sector da eletricidade ao Estado chinês). O Governo adiantou os €3 mil milhões, a empresa sobreviveu, aplicou um duro plano de redução de salários, recuperou entretanto parte do seu mercado, a Comissão Europeia obrigou-a a reduzir-se para facilitar a vida aos concorrentes e eis que vai ser vendida. De facto, é aqui que está o rombo nas contas públicas, as tais que deviam ser certas: a TAP deu €110 milhões de lucro no verão passado, está agora a começar a poder pagar o adiantamento público e o Governo vai disso abdicar vendendo-a a uma empresa alemã, espanhola ou inglesa. Se se perguntar, é afinal pela mesma doutrina de sempre: o privado gere melhor.

No caso das empresas de aviação, esta alegação é pelo menos misteriosa depois de Casimiro e Neeleman. Já lá estiveram e só singraram com dinheiro que não era deles e arruinando uma e outra empresa. Afirmar agora, com o peso da evidência, que era melhor que tivessem continuado é pelo menos espantoso. Por isso não acuso os casimiro-neelemanistas de serem ideológicos. Lembro só que já tiveram a sua oportunidade e que apresentá-los como modelos, mesmo que para proteger clientes e amigos passados ou futuros, só é possível tomando os contribuintes por estúpidos.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 10 de março de 2023

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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