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Transportes em debate: transferência para os Municípios ou para os Privados?

O atual Governo tem prosseguido uma política de destruição dos transportes públicos.

A Assembleia Municipal de Lisboa concluiu, no mês de junho, um ciclo de debates sobre os transportes na cidade, o último dos quais sobre “Os desafios para Lisboa”. Falar de desafios é falar do futuro. E considerando as circunstâncias que atualmente rodeiam a questão, a clarificação tem de ser agora porque amanhã já será tarde.

O atual Governo tem prosseguido uma política de destruição dos transportes públicos. Os resultados estão à vista: na Carris, no final de 2013, havia -26,5% de passageiros transportados, -20,7% de kms percorridos, -19% de efetivos, -15 carreiras de autocarros, -120 autocarros e elétricos. A tudo isso a CML disse que sim, embora, em alguns casos (poucos), o cenário podia ainda ser pior (Ex: a supressão da carreira 18 de elétricos).

Por outro lado, a receita média por passageiro (incluindo subsídios à exploração), subiu +54,8% nos autocarros e +107,1% nos elétricos. Com isto, o Governo conseguiu o “sucesso” de um Resultado Operacional (RO) positivo: +1 de M€ na Carris (com 18,6 Milhões de Indemnizações Compensatórias). No Metro, foi parecido: RO de +22,6 M€ (com 44 Milhões de IC).

Defender que a Câmara Municipal seja parte determinante da gestão dos transportes é quase uma dedução lógica. Impõe-se que o processo de privatização dos transportes em Lisboa e no Porto seja imediatamente suspenso e que o Governo negoceie a transferência da gestão e propriedade

Porém, os Resultados Líquidos saíram furados: -7,6 M€ na Carris; -15,3 M€ no ML. Erro na “magia”? Não, efeito SWAP. Como se sabe, as operações SWAP, foram decisões dos anteriores Governos PS e PSD/CDS, apoiado no seu exército de gestores “muito modernos”. Alguns desses “gestores” foram “premiados” e são ministros e/ou secretários de estado. Com exceção de alguns “peões”, nenhuma responsabilidade foi apurada.

Mesmo assim, o Governo não desistiu de enganar os incautos, sustentando que “optou pela concessão das empresas porque era uma questão de sobrevivência”. Nada mais falso. Os SWAPs provam o contrário.

Outra falsidade: “as ICs vão desaparecer com a concessão a privados”. Esta anedota, digna de uma “stand-up comedy”, não resiste um parágrafo.

As ICs nos transportes não são caso único. O Governo gere mais de uma dúzia de “grandes projetos”, gordos de ICs. As “rendas” que são pagas à EDP para cobrir o alegado “défice tarifário” ou as que o Estado entrega às PPPs rodoviárias, mais não são do que ICs com outro nome. Acontece o mesmo noutros setores: energias renováveis, hospitais, escolas, segurança, etc, uma floresta de negociatas que tornaram Portugal campeão das PPPs. Na essência, todas iguais: saque dos dinheiros públicos e garantia de um pinga-pinga sem riscos, aos privados.

Nos últimos 3 anos, as fortunas dos mais ricos aumentaram +19,5%. Mas o rendimento da maioria recuou 20 anos, o desemprego ultrapassou 1,5 milhões e a emigração 300.000. Mesmo assim, o Governo não desiste da austeridade infinita para reduzir o valor do trabalho e favorecer a nova ganância - os capitais rentistas.

Esta “narrativa” sobre as ICs nos transportes tem uma razão: é o que falta para desmantelar o serviço público, pois quase tudo já foi privatizado ou está a caminho.

Surpreende que António Costa não responda ao senhor SET quando este diz que “a proposta da câmara tem de ser mais vantajosa que o privado”. É normal que a Câmara seja comparada com os 13 concorrentes que estão em linha para a concessão? Cremos que não. Nesta matéria, a verdadeira escolha é entre democracia e mercado. O Governo olha para essa escolha do lado do “mercado”, ou seja, do “quem dá mais”. António Costa deveria responder que a democracia está em primeiro lugar. Isso significa que, quando se pensa e decide sobre uma cidade, deve-se incluir o acesso dos cidadãos aos transportes, pelo que a questão essencial não é de dinheiro mas sim de direitos.

O dinheiro é importante “para o equilíbrio das empresas”? Sem dúvida. Por isso, é decisivo encontrar outras formas de financiamento sem ser à custa de aumentos nas tarifas. António Costa já exibe algumas melhorias nesta questão, reconhecendo, por exemplo, que o IMI pode servir para financiar os transportes, especialmente os investimentos. Essa ideia é defendida pelo Bloco de Esquerda há mais de 10 anos. Essa, e não só. Uma parte das mais-valias, liquidada nas transações imobiliárias, associadas à proximidade dos transportes, devia ser canalizada para o sistema. Parte das receitas de estacionamento, também. As empresas (públicas e privadas), que têm parques no centro da cidade, deviam pagar. O mesmo se devia aplicar a uma parte do imposto sobre os produtos petrolíferos, coletado na venda de combustíveis nos concelhos da AML.

No fim da linha do financiamento estão as tarifas. Se forem necessárias, sublinhe-se. Há cidades e regiões, em várias partes do mundo, onde os transportes têm “Tarifa Zero”: Talin (Estónia), Zagreb (Croácia), Sydney (Austrália), Hasselt (Bélgica), Cardiff (País de Gales), Sheffield (Inglaterra), Pays d’Aubgne et de l’Étoile (França), Miami, Salt Lake City, Seattle (EUA), Calgary (Canadá), Bangkok (Tailândia), são alguns exemplos. Aqui, os transportes servem a mobilidade das pessoas e não a rentabilidade das empresas. Este é o debate essencial: devemos olhar para as pessoas ou para os mercados?

Defender que a Câmara Municipal seja parte determinante da gestão dos transportes é quase uma dedução lógica. Impõe-se que o processo de privatização dos transportes em Lisboa e no Porto seja imediatamente suspenso e que o Governo negoceie a transferência da gestão e propriedade. O formato de parceria pública-pública, conjugando a presença do Estado, Câmara e, no futuro, da Região, abrirá um novo caminho para um serviço público de qualidade, em linha com as opções de desenvolvimento e ordenamento das cidades e da região.

Para alguns, deve continuar a ser o Estado, centralista, a tutelar as empresas. Mas num momento em que o Governo defende a concessão a privados, a oposição do PCP à passagem da gestão para as Câmaras, funciona como um “empurrão” às posições do Governo, que este agradece. Mesmo que seja o contrário do que se defende noutras autarquias: a provisão pública do transporte.

Artigo publicado (parcialmente) no jornal “Público.

Sobre o/a autor(a)

Economista de transportes
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