Está aqui

Transição digital nas escolas – da utilização pedagógica ao trabalho burocrático

A necessidade, apresentada como premente, de generalizar a utilização das tecnologias digitais é recorrente no discurso político e nas medidas de política educativa, com referência às suas múltiplas virtualidades, nas quais se destaca a desburocratização dos processos.

O esforço de dotar as escolas e a comunidade educativa das ferramentas e competências necessárias para poder operar na que já foi designada por Sociedade da Informação, tem pelo menos duas décadas, ao longo das quais projetos e iniciativas foram implementados e depois extintos, muitas vezes sem deixar lastro.

São exemplos o Minerva, o Nónio, o Programa Internet nas Escolas e a primeira fase do Programa Tecnológico das Escolas. Este último foi o único que incluiu formas de aquisição de equipamentos para alunos e também para professores e dotou massivamente as escolas de computadores, projetores multimédia, quadros interativos e salas de informática.

Estas iniciativas visavam a utilização pedagógica e didática das tecnologias de informação e comunicação e contribuir transversalmente para a diminuição do fosso digital e para a literacia digital, proporcionando a todos os alunos e alunas o acesso e o uso das mais diversas ferramentas.

Não está demonstrado que mais tecnologias aliviam o trabalho e melhoram a comunicação. Os professores e professoras vivem este facto quotidianamente e a investigação tem vindo a confirmá-lo

A formação contínua de professores acompanhou este processo, mas como dependia de financiamento europeu, assim que chegou a crise de 2008, terminou nos moldes em que foi concebida: formação diversificada, de caráter pedagógico e didático, mas também na perspetiva do utilizador, e que gerava por contacto do entusiasmo trabalho colaborativo entre professores, pois pressuponha que cada professor em formação desenvolvesse pelo menos um conteúdo didático em formato digital, nos mais variados suportes. Toda essa dinâmica foi interrompida e descontinuada, substituída por uma outra, de pendor doutrinário e em cascata, com formação de formadores, destes, de um professor por agrupamento, transformado também ele em formador improvisado nos normativos do Ministério da Educação, e para as quais o mesmo ministério disponibiliza financiamento.

Depois de mais de uma década sem renovação do parque informático nem das redes, no momento atual e resultante também da evolução tecnológica, a utilização dos computadores está limitada aos cursos de informática e aulas TIC quase exclusivamente. No entanto, a designada desmaterialização dos processos não deixou de ocorrer pela via das tecnologias digitais e da internet. Complexas e imbricadas tarefas são exigidas, aumentando a carga burocrática e sem a proclamada simplificação dos processos.

As já famosas plataformas, para tudo e mais alguma coisa, consomem o escasso tempo de professores e professoras e até dos diretores, a ponto de pouco ou nenhum tempo haver para a preparação de aulas e para a exploração de outras formas de levar os alunos e alunas a aprender, aumentando e adensando o trabalho que entra no regime de sobretrabalho. Solicita-se o preenchimento de infindáveis questionários, em múltiplos sítios na internet, a toda a hora e em tempo curto: recenseamento de professores, concursos, alunos, turmas, levantamentos, existências, acervos, instalações, refeições e leite escolar, transportes, operações contabilísticas e financeiras, inquéritos de vária ordem, gestão de professores, assistentes operacionais, avaliação e agora, registo dos casos covid. A lista não acaba aqui e é uma verdadeira saga.

Não está demonstrado que mais tecnologias aliviam o trabalho e melhoram a comunicação. Os professores e professoras vivem este facto quotidianamente e a investigação tem vindo a confirmá-lo. O que melhora é o controlo remoto e centralizado das escolas e agrupamentos, como refere Licínio Lima.

Um exemplo visível é a nova plataforma de gestão de alunos do Ministério da Educação, a E360, em experimentação em algumas escolas. Além dos bugs – erros do programa – que a tornam impraticável, pede informações sobre a avaliação que é feita por cada professor, indo à aplicação dos critérios de avaliação, não se ficando pelo nível ou pela nota. Ora, isto põe em causa a autonomia do professor e coloca nas mãos do ME um manancial gigantesco de informação que de outro modo nunca sonharia dispor e de um modo centralizado.

Portanto, o que a investigação já nos diz é que estes processos de modernização administrativa, pela via digital, apresentados como inovadores e que vão resultar em verdadeiras reformas da administração pública no nosso país, além de não serem ideias novas, duplicam e triplicam o trabalho na escola.

No entretanto, não foram feitos esforços de renovação do parque informático das escolas, não se expandiu a capacidade das redes, não se abriram possibilidades de aquisição de equipamentos a preços acessíveis para alunos e professores, não se retomou a formação contínua.

Eis que vem uma pandemia que torna visível as fragilidades: alunos e professores em casa confinados em ensino não presencial, mas sem equipamento compatível e sem ligação rápida à Internet!

E o que faz o governo? Anuncia computadores em barda para as escolas, mas apenas para os alunos, e formação obrigatória para os professores, mesmo para aqueles que já desenvolveram competências digitais. Mais uma tentativa errática, desenquadrada e sem finalidades pedagógicas e didáticas.

Por fim, aquilo que verdadeiramente faz falta, uma plataforma do Ministério da Educação para o ensino não presencial que permita a todas as comunidades educativas terem acesso a materiais de aprendizagem, reunir grupos pequenos de alunos virtualmente em trabalho colaborativo e de partilha de aprendizagens, nem um vislumbre.

Artigo publicado em plataformamedia.com

Sobre o/a autor(a)

Professora de História e Sociologia da Educação. Dirigente do Bloco de Esquerda
(...)