Está aqui

Trabalhar a terra

A criação de um banco público de terras é uma pedrada neste charco que muda muitas vidas ao colocar terra abandonada nas mãos de quem a quer (e pode) trabalhar.

Mãos à terra

Num país que não conheceu uma reforma agrária efectiva, a terra continua dividida entre uma pequena propriedade própria de uma agricultura de subsistência, sem escala produtiva e envelhecida, e a grande propriedade rentista que vive à sombra de subsídios que financiam a sua improdutividade. O resultado tem sido a desertificação das zonas rurais, o definhar da produção agrícola e o consequente aumento de importações de bens alimentares com todos os gastos económicos e ambientais que isso acarreta.

A criação de um banco público de terras, proposta apresentada pelo Bloco de Esquerda, é uma pedrada neste charco que muda muitas vidas ao colocar terra abandonada nas mãos de quem a quer (e pode) trabalhar.

Pés assentes na Terra

Apesar da importância da proposta, e partindo do princípio que sai incólume do buraco negro do trabalho em Comissão Parlamentar, convém ter os pés assentes na Terra e ter presente que as pedradas não mudam a natureza dos pântanos. Isto quer dizer que é preciso ter consciência do muito que fica por fazer para termos uma política da terra mais justa.

Em primeiro lugar, no que diz lugar à anunciada reforma da Política Agrícola Comum. A próxima reforma da PAC será um momento de luta entre interesses nacionais divergentes, um processo de divisão de recursos importantes pelos interesses em presença (40% do Orçamento da União Europeia é destinado às ajudas directas ao agricultores) e uma forma de re-legitimação da atribuição de fundos à agricultura. Os grandes proprietários e a agro-indústria não quererão abrir mão dos seus privilégios, procurarão que tal seja mantido no maior segredo (e o Tribunal de Justiça da EU ajudou ao decidir http://www.revistaelobservador.com/index.php?option=com_content&task=vie... que estes subsídios são informações do âmbito privado que não mais poderão ser tornadas públicas), mas terão certamente de conceder algo a um vago discurso ambientalmente correcto e ao capitalismo verde como forma de justificarem a factura.

Em segundo lugar, ficam outros passos por dar para que mais mãos se possam meter na terra: é preciso, por exemplo, mudar as condições mercantis do crédito à actividade agrícola, trabalhar para uma socialização progressiva dos saberes e das técnicas mais adequadas e ambientalmente correctas ou até estudar a viabilidade de um rendimento agrícola mínimo.

Em terceiro lugar, há toda uma luta a fazer sobre as condições de trabalho nos meios rurais: dos direitos dos/as trabalhadores/as sazonais aos direitos da mão-de-obra imigrante que vive, por vezes, situações de quase escravatura.

Em quarto lugar, existem questões ambientais que são decisivas: a vida, através das sementes, cada vez mais patenteada, os Organismos Geneticamente Modificados apresentados como panaceia para os problemas alimentares do mundo, tornando os agricultores dependentes das multinacionais, a segurança alimentar, o monocultivo e a diversidade de espécies.

Daí que, em quinto lugar, seja preciso colocar em causa o próprio modelo de produção e de consumo. Ou seja, não basta substituir a improdutividade actual, própria do caso português, por um produtivismo industrialista que desbarate os recursos naturais. É preciso ter consciência dos desgastes causados pela industrialização da agricultura, responsável em grande medida pela emissão de gases nocivos, pelo gasto de água e dependente fortemente do petróleo, e perceber os efeitos de orientar a produção para o mercado externo. É preciso também lutar contra a especulação dos “mercados de futuros”.

Assim, a velha questão da terra permanece decisiva na definição de uma política socialista. É nela se cavam trincheiras: entre a defesa da terra como bem comum e a primazia à propriedade da terra (tantas vezes de legitimidade histórica contestável) ou entre a alimentação enquanto direito humano inalienável e a lógica da competitividade e da concorrência.

Sobre o/a autor(a)

Professor.
Comentários (1)