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Torre Portugália, com um jeitinho para ultrapassar o bom senso

Querem vender-nos a ideia de que ou se constrói uma torre de 60 metros ou a ferida continua a céu aberto. Ou estamos pela cidade ou contra a cidade, a lenga-lenga do “não há alternativa”.
Fachada devoluta da fábrica de cerveja Portugália. Foto restosdecoleccao.blogspot.com

O debate está aberto - Uma torre com mais de 60 metros no Quarteirão da Portugália, em plena Av. Almirante Reis. É mesmo esta a resposta que a Avenida Almirante Reis precisa?

A Câmara Municipal de Lisboa colocou em consulta pública o projecto para a autorização da construção de mais um empreendimento luxuoso na cidade. Nada seria de novo, não fosse o caso de estar proposta uma torre com mais de 60 metros de altura no quarteirão da cervejaria Portugália.

A questão está envolta numa enorme polémica. O promotor afirma que o prédio cumpre todos os regulamentos, planos e normas aplicáveis mas alguma coisa está mal contada. Como é que a construção de um prédio com 16 andares, mais do dobro da altura dos prédios da Av. Almirante Reis, pode ser legal? A resposta é simples, trata-se de um fundo de investimento com grande capacidade económica e, com jeitinho, arranja-se um artigo no PDM para excepcionar a intervenção; é o típico caso de “dois pesos, duas medidas”.

Os autores do projeto defendiam na quinta-feira que a torre era essencial para garantir o espaço público. Falemos então de espaço público: do Largo de Santa Bárbara, da Igreja dos Anjos ou, da Praça Olegário Mariano, falemos dos Hospitais desativados, o Hospital do Desterro ou, o Hospital de Arroios, há anos que a população de Arroios aguarda uma solução para aquelas feridas urbanas. Não precisamos de uma torre de 60 metros para ter espaço público de qualidade ao longo da Avenida Almirante Reis. Precisamos de requalificar a Avenida Almirante Reis no seu todo e isso, é uma decisão política mais difícil do que licenciar um empreendimento de um multimilionário fundo de investimento imobiliário.

Os cidadãos de Arroios já se manifestaram contra a construção deste empreendimento, porque, dizem, a “torre descaracteriza e fere a identidade arquitectónica dos bairros envolventes”. E têm toda a razão. Desde o Martim Moniz ao Areeiro, as intervenções urbanísticas na Almirante Reis a tratam como uma avenida de segunda, provavelmente por ser mais popular do que as nobres avenidas novas.

A verdade é que esta avenida tem sido sempre “o parente pobre”, não é apenas o quarteirão da Portugália, ao longo da Avenida Almirante Reis, que aguarda há anos por uma solução. Aprovar um edifício com 16 andares abre um precedente para que outras torres surjam nas imediações. Isto sim, é abrir “uma caixa de Pandora”, mas correndo o risco de Fernando Medina e de Teresa Leal Coelho não conhecerem o conceito, podemos pedir a Centeno para explicar, tal como fez com a carreira dos professores.

Mas voltemos ao “jeitinho”. Argumentam os autores do projecto e o promotor, o Fundo Sete Colinas, gerido e representado por Silvip – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, que a torre de 16 pisos é o que permite criar espaço público. Vamos tentar perceber o que é que é isto quer dizer. Se aplicarmos os índices de construção previstos no PDM, os promotores podem construir 18 mil m2. No entanto, o promotor requereu à câmara, ao abrigo do regulamento que aprova o Sistema de Incentivos a Operações Urbanísticas com Interesse Municipal, a aplicação dos créditos de construção e assim, conseguiram mais 11mil m2, num total de 29 mil metros quadrados.

Mas como assim, “créditos de construção”? Pois é. Estes são uma espécie de moeda de troca para os promotores, que se comprometem a criar oferta suplementar de estacionamento para os residentes, a integrar conceitos bioclimáticos e de eficiência energética, e infra-estruturas ou espaço público. Em troca, o município concede-lhes o direito de construir mais área, olhando para o lado mesmo se falamos de torres.

A Câmara de Lisboa tem mão pesada para com os cidadãos que querem fazer pequenas obras nas suas casas. Para os fundos imobiliários as regras são diferentes. Os créditos de construção foram inventados pelo PSD e pelo PS e sempre foram rejeitadas as propostas do Bloco de Esquerda para acabar com esses créditos abusivos. Agora, estes créditos criam as condições para mais 11 mil metros quadrados e uma torre na Av. Almirante Reis. A política é sempre feita de opções. PSD e PS têm optado por estes jeitinhos aos fundos imobiliários.

Apesar da oposição da população e das críticas da esquerda à direita à Torre da Portugália, o Partido Socialista quer mesmo declarar o projeto de interesse municipal tendo pedido ajuda para aprovar o projeto à vereadora do PSD Teresa Leal Coelho, apesar do outro vereador eleito e da concelhia do PSD em Lisboa terem manifestado a sua oposição ao empreendimento.

Nos terrenos da Portugália está uma ferida aberta na cidade de Lisboa; ferida que tem de ser resolvida. Mas não é admissível que à boleia da resolução de um problema se crie um ainda maior. Querem vender-nos a ideia de que ou se constrói uma torre de 60 metros ou a ferida continua a céu aberto. Ou estamos pela cidade ou contra a cidade, a lenga-lenga do “não há alternativa”.

A câmara não deve autorizar a construção da Torre da Portugália e se o fundo imobiliário quiser vender o terreno, a câmara deve comprá-lo. Uma intervenção urbana com investimento público podia garantir a construção de casas para o programa de renda acessível público ou para a construção de equipamentos públicos, como escolas e jardins de infância, tão necessárias nesta zona da cidade.

Temos de insistir. A prioridade não passa por construção em altura descontextualizada. Passa por requalificar aquela zona da cidade rapidamente. No Martim Moniz, a câmara, confrontada com a exigência popular de um jardim, teima em querer avançar com a concessão do espaço à Stone Capital; as obras do metro na Praça do Chile continuam paradas sem alternativa; o trânsito está cada vez mais caótico na Av. Almirante Reis e há muito que precisa de uma ciclovia e faixa de bus. Se é verdade que aquela avenida tem sido esquecida pelo município é preciso dizer que é preciso bom senso: não se resolve um erro com outro erro.

Artigo publicado em publico.pt a 21 de maio de 2019

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