“Entre passo e movimento
A corda que faz o laço
A força que faz o braço
Acordar o pensamento”
in Margem de certa maneira, de José Mário Branco
A modernidade capitalista trouxe-nos inúmeras formas de inovação no campo laboral. Pautadas pela lógica da eficiência e da comodidade, vimos, nos anos recentes, a emergência de diversos serviços que se tornaram categorias inseparáveis da forma com que vivenciamos a economia e os seus processos. Temos, assim, a partir de um pequeno ecrã de telemóvel, uma infinidade de aplicações de entrega ao domicílio, de motorista, de serviços. Este “progresso” laboral ancorou-se ainda na ideia de que vivemos num mercado de trabalho rígido, que deve a todo e qualquer custo ser flexibilizado, sob pena de nunca nos libertarmos da prisão que nos impede de ser tão ricos como aqueles para quem trabalhamos.
Surgem-nos, porém, algumas dúvidas quanto a esta marcha para a felicidade prometida. Se olharmos à exploração que grassa, à perda continuada de poder de compra, à insegurança dos vínculos e contratos de trabalho, à impossibilidade de pagar a renda ou a prestação da casa, à destruição da nossa saúde psíquica e, sobretudo, se contrastado tudo isto com o privilégio de alguns e com incessante aumento dos lucros dos acionistas das grandes empresas (de que os donos das plataformas digitais são expoente paradigmático).
Qual, então, o preço a pagar pelo discurso do empreendedorismo libertador? No mundo das grandes corporações, o progresso significa, antes de tudo, “redução de pessoal” e o avanço tecnológico equivale à substituição humana por software electrónico. A ética do empreendedorismo faz-se acompanhar muitas vezes de acusações aos beneficiários dos programas sociais de não quererem trabalhar, de que podiam ganhar a vida se abandonassem os seus hábitos de dependência, de preguiça e de abuso. Todavia, sabemos do entusiasmo com que os mercados bolsistas e os senhores da finança reagem às notícias de qualquer “restruturação” empresarial, ou seja, despedimentos colectivos e extinção de postos de trabalho.
Os empregos permanentes, seguros e estáveis tornaram-se excepção, os postos de trabalho criados não garantem continuidade, uma vez que o lema da flexibilidade implica um jogo de contratação e despedimento com muito poucas regras que, além do mais, são susceptíveis de mudar unilateralmente enquanto o jogo está a ser jogado.
Longe de ser consequência de algum disfuncionamento passageiro do sistema económico, esta sucessão de crises que vivemos (crise bancária, primeiro, e das dívidas soberanas, depois; crise social e económica imposta pela demencial receita da austeridade; crise pandémica; e, por fim, a Guerra) não pode deixar de suscitar a nossa reflexão sobre o papel da economia nas sociedades modernas, desde logo, porque ao seu funcionamento está eternamente associada a ressurgência da pobreza e o aumento das desigualdades sociais, após décadas em que a homogeneidade social parecia haver sido uma conquista irreversível.
A incerteza do amanhã, a percepção do futuro como resultado de circunstâncias do acaso e a impossibilidade de o podermos projectar, tudo isso contribuiu (e contribui) para desencadear uma retracção, um fechamento, das pessoas sobre si próprias, oscilando entre o pavor e a autocensura. Viver sob o peso do medo de vir a ser impedido de participar na produção e, assim, ser tornado inútil, descartável, excedentário, desencadeia formas de individualismo negativo, de sofrimento psíquico, que, todavia, não deixam de nos fragilizar que toca às possibilidades de esboçar e gerar o nosso próprio futuro.
Saibamos, desde logo, e como cantou José Mário Branco, “acordar o pensamento”.