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Tony Kushner e os anjos da dissidência

Tony Kushner vai receber o título de Doutor Honoris Causa da Faculdade de Justiça Criminal John Jay da cidade de Nova York. A outorga do título transformou-se numa grande notícia quando foi abruptamente suspensa pelo Conselho Administrativo da Universidade, logo após um dos seus conselheiros acusar Kushner de ser anti-israelita.

Tony Kushner vai receber o título de Doutor Honoris Causa da Faculdade de Justiça Criminal John Jay da cidade de Nova York, Estados Unidos. Isso não deveria ser uma grande notícia. Kushner é um reconhecido dramaturgo que ganhou o Prémio Pulitzer no género teatro, além de um prémio Emmy e dois prémios Tony. No entanto, a outorga do título transformou-se numa grande notícia quando foi abruptamente suspensa pelo Conselho Administrativo da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY, sigla do nome original em inglês) durante a sessão do dia 02 de maio, logo após um dos seus conselheiros acusar Kushner de ser anti-israelita.

Rapidamente teve início uma campanha a favor de Kushner, que a princípio consistiu em solicitar aos vencedores do título honoris causa da CUNY (da qual a Faculdade John Jay faz parte) a devolução do mesmo. Depois de alguns dias, o que deveria ser apenas uma simples outorga de título, converteu-se num escândalo de dimensões internacionais. O presidente do Conselho Administrativo da universidade, Benno Schmidt, ex-reitor da Universidade de Yale, convocou uma reunião executiva de emergência do Conselho, que, de forma unânime, votou por devolver o reconhecimento a Kushner.

A polémica expôs a polarização extrema que define cada vez mais o conflito entre Palestina e Israel, tal como a vontade de alguns de acabar com a liberdade de expressão e o diálogo enérgico que clama por mudanças no dogma político intransigente. O administrador que atacou Kushner, Jeffrey Wiesenfeld, começou o seu discurso na reunião do CUNY com um ataque a Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda e ex-Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Depois continuou: “Há muita actividade hipócrita e irracional contra o Estado de Israel nas universidades de todo o país, no Ocidente em geral e, com frequência, nos Estados Unidos também”. Como prova das suas afirmações, Wiesenfeld apresentou várias citações que atribuiu a Kushner, e concluiu dizendo “Não quero aborrecê-los com todos os detalhes”.

Kushner me disse: “O que está a haver não tem nada a ver com poupar os pormenores inoportunos, até porque tais detalhes são todas as coisas que disse sobre o Estado de Israel e, de facto, esclareceriam o conselho de que de nenhum modo sou inimigo do Estado de Israel, que não sou um partidário fervoroso do Estado de Israel. A crítica às políticas de Estado não significam que alguém procure a destruição deste. Também tenho muitas críticas a respeito das políticas do meu próprio governo”.

Em primeiro lugar, vejamos um pouco da trajectória de Tony Kushner. Ganhou o prémio Pulitzer pela sua obra “Anjos na América”. A obra tem como subtítulo “Uma fantasia homossexual nos assuntos nacionais”, e trata da epidemia de HIV/SIDA e a luta que muitos gays e lésbicas suportam cotidianamente nos Estados Unidos. Um personagem-chave da obra é inspirado em Roy Cohn, famoso advogado que no começo da sua carreira fora um importante assessor do Senador Joseph McCarthy. Cohn ajudou McCarthy a levar adiante a sua perseguição cega contra suspeitos de serem comunistas dentro do governo dos Estados Unidos e mais além.

Considera-se que o advogado tenha sido um homossexual não declarado durante toda a sua vida, apesar da sua ajuda a alguns alvos de perseguição política apenas por serem gays. Cohn morreu em 1986 em virtude de complicações provocadas pela SIDA. Publicamente, afirmava que padecia de cancro de fígado. Agora, numa reviravolta dramática da vida real, Kushner, que escreveu muito sobre a caça às bruxas da era McCarthy, tornou-se protagonista de uma nova caça.

Neste caso, o Roy Cohn do Conselho Administrativo de CUNY é Wiesenfeld, que foi designado pelo ex-governador republicano de Nova York George Pataki.

Entrevistei Tony Kushner logo após ele saber que haviam restabelecido o seu doutoramento Honoris Causa. Kushner disse-me: “Posso falar a respeito dos comentários que fiz ao longo dos anos, quando me perguntaram sobre a fundação do Estado de Israel. Se eu considero que foi a decisão correcta ou se foi um erro, se foi inteligente ou imprudente para o povo judeu são assuntos realmente complicados. Creio fervorosamente que o Estado de Israel existe, deve continuar a existir e deve ser defendido. Creio que é necessário haver uma solução pacífica dos Estados em crise no Médio Oriente”.

Ele continua: “Mas creio também que a política adoptada pelos Estados Unidos no Médio Oriente, tomando por base fantasias de direita, teocráticas e interpretativas bíblicas do que corresponde à história e à realidade da região é catastrófica e vai provocar a destruição do Estado de Israel. Essas pessoas não o estão a defender. Não o estão a apoiar. De facto, estão a provocar a distorção da política norte-americana a respeito de Israel, e uma distorção da política interna do próprio Estado, em virtude de exercerem uma enorme influência no país e apoiarem políticos de direita que considero responsáveis por levarem Israel a um lugar muito obscuro e perigoso”.

Durante a era McCarthy, os Estados Unidos também eram um lugar obscuro e perigoso. Agora, no meio dos levantamentos populares no mundo árabe e muçulmano, a recente aproximação entre Fatah e Hamas, e o provável reconhecimento do Estado palestiniano por parte da Assembleia Geral das Nações Unidas, não há melhor momento para se fomentar um debate vigoroso e esclarecedor.

O futuro da paz no Médio Oriente depende da dissidência. Aqueles que, como Tony Kushner, têm a coragem de falar o que pensam são os verdadeiros anjos dos Estados Unidos.

Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna. Texto em inglês traduzido por Fernanda Gerpe y Democracy Now! para espanhol.

Texto em espanhol traduzido para português por Rafael Cavalcanti Barreto, e revisto por Bruno Lima Rocha, para Estratégia & Análise.

Sobre o/a autor(a)

Co-fundadora da rádio Democracy Now, jornalista norte-americana e escritora.
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