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“Todo o mundo tem relógio, mas perdemos o tempo”

A frase certeira é de Célia Xakriabá. Ao longo desta semana, e durante os próximos dias, a Associação "Articulação dos Povos Indígenas do Brasil" (APIB), em parceria com organizações da sociedade civil, dão corpo à campanha “Sangue Indígena: Nenhuma Uma Gota Mais”.

Uma delegação de representantes indígenas composta por Alberto Terena, Angela Kaxuyana, Celia Xakriabá, Dinaman Tuxá, Elizeu Guarani Kaiowá e Kretã Kaingang esteve esta semana no Parlamento Europeu. Não se tratou de uma visita de cortesia, mas antes de uma denúncia das sistemáticas violações contra os povos indígenas brasileiros, bastante agravadas desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência do Brasil.

Com efeito, às agressões já existentes, a Presidência de Bolsonaro juntou políticas claras tendo em vista o não cumprimento dos acordos internacionais sobre o combate às alterações climáticas ou o respeito pelos direitos humanos. O ataque às populações indígenas contrasta com o apoio ao agronegócio e à destruição da Floresta da Amazónia ou das terras demarcadas para os povos indígenas. É esse contraste que justifica que as autoridades brasileiras usem o argumento de que é “terra a mais” para uma pequena percentagem da população brasileira, ainda que sejam quatro milhões, mas não questione as áreas bastante mais generosas de terra que estão entregues a meia dúzia de produtores que se dedicam à agricultura intensiva e ao agronegócio. Numa altura em que discutimos ainda o acordo União Europeia - Mercosul, a vinda desta delegação enche-se de sentido.

São relatos impressionantes. Quem está prestes a assinar um acordo, como o UE-Mercosul, tem mesmo de saber qual a origem dos produtos, como a soja ou a carne, e quais os custos sociais e ambientais da sua produção. Ao mesmo tempo, tem de dizer de forma transparente que se está a abrir as portas à entrada de agro-tóxicos actualmente não aceites na União Europeia. Os defensores do Acordo garantem que todos os mecanismos de controle serão activados e que haverá uma cláusula sobre direitos humanos e protecção dos povos indígenas. Sabemos bem que uma cláusula não é suficiente. Basta olhar para todos os acordos de livre comércio ou de associação da União Europeia com outros países ou regiões para saber que essa cláusula nunca sai do papel ou se reveste de efeitos perversos.

Esta visita ao Parlamento Europeu e a vários países europeus é importante para que possamos assumir as nossas responsabilidades. A luta dos povos indígenas é uma luta pelo planeta e pelos direitos humanos. É uma luta que tem que ser nossa, da humanidade. É altura de parar um modelo de desenvolvimento que passa por cima das nossas vidas, que se faz contra a humanidade. Voltando a Célia Xakriabá, “todo mundo tem um relógio, mas perdemos o tempo”. Ainda podemos recuperá-lo se soubermos pensar além do lucro e dos interesses privados imediatos. Afinal, este planeta é mesmo a nossa casa comum.

Artigo publicado em “Diário de Notícias” em 9 de novembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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