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Tirem as vossas mãos pegajosas das bibliotecas

O impensável há alguns, poucos, anos começa agora a concretizar-se. Do Reino Unido chegam notícias de projectos para fecho massivo de bibliotecas públicas, o que está a gerar um grande movimento de contestação.

A estas vozes de protesto somou-se recentemente a do escritor Philip Pullman numa palestra intitulada “Deixem as bibliotecas em paz. Vocês não compreendem o seu valor”.

Neste apelo sentido Pullman dá voz a todos e todas que se revoltam com a maneira como o poder central sacudiu para o local a responsabilidade de manter as bibliotecas abertas ou não, retirando-lhes entretanto o financiamento do orçamento do estado. E dá como exemplo o da sua região que passará de 43 a 20 bibliotecas públicas, se o projecto for em frente.

A alternativa à falta de financiamento está entre o ridículo e o muito perigoso: voluntários - com a falta de emprego há muita gente a querer dar um sentido ao seu tempo livre o que se compreende, mas isso não pode pôr em cheque o emprego dos demais. Vistas bem as coisas é portanto mais perigoso que ridículo. Nos Estados Unidos um ataque semelhante contou com a oposição activa e bem sucedida de muita população

A agravar tudo isto as estatísticas internacionais mostram que em tempos de crise a frequência das bibliotecas públicas está a ter aumentos de visitas na ordem dos 20, 30 % e mais. É que estas bibliotecas são hoje centros de informação cidadã que incluem acesso à Internet, cursos de línguas para emigrantes estrangeiros, ocupação activa de cidadãos seniores, apoio no preenchimento de formulários em-linha como os da declaração de rendimentos ou de candidaturas a emprego, etc. Com os cortes das famílias para enfrentar a recessão, as salas limpas, acolhedoras, quentes, das bibliotecas, com os seus jornais, livros, jogos, Internet e apoio de pessoal especializado, tornaram-se um destino ainda mais apetecido.

E estranhamente (ou não) propõe-se ainda que queira muito bem à sua biblioteca local licite uma parte dum bolo de dinheiro que ele, governo, decidiu por fim por à disposição. Ou seja, localidades contra localidades a competir por aquilo que deveria ser seu por direito próprio. E todo um serviço público dos mais acarinhados pela população a ter de repousar em quantidades intermináveis de voluntários bem intencionados mas não qualificados...

E voltando aos comentários de Pullman:

«Isto sempre resulta em vitória para um lado e derrota para o outro. Está tudo preparado para o fazer. Importou-se os piores excessos do fundamentalismo de mercado para aquela arena que costumava estar segura em relação a eles, aquela parte de nossa vida pública e social que costumava estar livre da pressão comercial para ganhar ou perder, para sobreviver ou morrer, a qual é a essência da religião do mercado. Como todos os fundamentalistas, que têm as mãos pegajosas nas alavancas do poder político, os fanáticos do mercado vão matar todos os escaninhos da nossa vida pública que sejam humanos, alentadores da vida, generosos, imaginativos e dignos. Eu acho que pouco a pouco, estamos a acordar para a verdade sobre os fanáticos de mercado e o seu credo. Ainda vamos ver que o velho Karl Marx pôs o dedo no cerne da questão quando assinalou que o mercado no fim acaba a destruir tudo o que conhecemos, tudo o que pensávamos ser seguro e sólido. É o solvente mais poderoso conhecido na história. 'Tudo o que é sólido transforma-se em ar', disse ele. 'Tudo o que é sagrado é profanado'».

Recordando “com amor” as suas experiências como leitor de bibliotecas desde criança até à actualidade, afirma: “Somos cidadãos desse grande espaço democrático que se abre entre nós e o livro. E o corpo que no-lo deu é a biblioteca pública. Acaso poderei transmitir a magnitude de tal oferenda?”.

Pullman termina listando as várias localidades ameaçadas de ficar sem biblioteca. Como Alexandria ficou. E afirma: “Deixem as bibliotecas em paz. Vocês não sabem o valor do que estão a tratar. É demasiado precioso para se destruir”.

Isto tem tudo a ver connosco, aqui em Portugal também. Recentemente o Bloco apresentou um projecto de Lei que pretendia, por um lado, preencher o vazio legal de práticas com vários anos mas sem suporte legislativo; e, por outro, fixar padrões mínimos de serviço - incluindo a necessidade de ter pessoal devidamente qualificado -, estabelecer direitos e deveres de leitoras e leitores e ainda vincular o poder local ao cumprimento desses critérios. Esse projecto foi chumbado: votos a favor do Bloco e dos Verdes, a abstenção do PCP e votos contra do PS, PSD e CDS.

Perante tal panorama só temos a temer pelo futuro das nossas bibliotecas.

Daí o meu apelo a que estejamos atentos e sejamos firmes, como cidadãos e cidadãs na defesa desse grande espaço democrático que se abre entre nós e a leitura pública.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora em sociologia da cultura
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